sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Da Austrália, reenvio mensagem de Natal

Revendo Canberra, republico um dos posts que mais gosto do Sociologando, a propósito desta época que é sempre de lembranças e de renovação em muitos sentidos.


O título desta postagem inclui a expressão "o menino que faz aniversário", que ouvi há tempos do colega de pesquisas Jean Hébette, ao se referir ao Natal, durante uma das reuniões do nosso grupo de estudos. Hoje vem-me a mente um grande comentador e intérprete da vida de Jesus, o teólogo russo Aleksandr Mien, cujo livro Jesus, Mestre de Nazaré me foi sugerido por uma colega do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA. 

Tecendo suas reflexões em um contexto social e histórico distante, sua escrita tem uma grande qualidade, que é a de parecer travar um diálogo com o leitor,  propondo uma reflexão conjunta entre autor e leitor. E, assim, ele vai apresentando a figura de Jesus, sob ângulos por vezes surpreendentes, munido de farta documentação histórica, situando-o no seu tempo e, também, no que ele tem de universal e atemporal. Aproxima-se, portanto, da própria mensagem - muitas mensagens - do menino que faz aniversário em 25 de dezembro. 

Sem qualquer pretensão de dar uma lição religiosa, totalmente fora de minhas possibilidades ou competência, este texto reflete sobre alguns aspectos da obra do "mestre de Nazaré" que a tornam referência em muitas partes do planeta, referências culturais e ideais.  

Dentre as muitas passagens que valem a leitura da obra de Mien, há os  também muitos episódios em que Jesus exprimiu, por palavras e ações, sua concepção do ser humano universal, igualmente digno de reconhecimento independentemente de status, etnia, classe social ou gênero. Assim, por exemplo, no que tange à condição da mulher, ouve-se do autor que Jesus disse pela primeira vez a alguém tratar-se do Messias e "revelou a essência da religião do espírito" , não aos discípulos, mas a uma mulher, na Samaria; e, "ainda por cima, pecadora e herética...", nos padrões da época (p. 105). 

Mien situa a visão de Jesus sobre a igualdade radical  na condição de ser humano - nela incluída, portanto, as mulheres e os homens - no contexto da reflexão filosófica e religiosa da época, em que prevalecia o status subalterno da mulher.


Para um filósofo como Sócrates, a mulher era "um ser estúpido e enfadonho. No mundo pré-cristão, as mulheres quase sempre não passavam de servas mudas, cuja vida só conhecia o trabalho extenuante e as obrigações de casa. (...) Foi Cristo quem restituiu à mulher a dignidade humana que lhe fora tirada, o direito de ter exigências espirituais. A partir dele, o lugar da mulher não se limitou mais ao lar doméstico. Por isso, no grupo de seus seguidores mais íntimos vemos muitas mulheres.... (p. 105)

Do mesmo modo, relembramos a vivência de Jesus no meio das pessoas comuns e o seu objetivo maior de elevar os seres humanos ao plano divino desde "este mundo". Daí ter andado e convivido entre os "mais simples", de uma maneira muito diversa do que  igrejas instituídas assumiriam muitas vezes ao longo de suas histórias: poderes  materialmente distantes dos seus "povos".


O desdém pelas hierarquias sociais ficou patente nas manifestações de divindade de Jesus em momentos ordinários, entre pessoas comuns e não em situações solenes ou majestáticas, de evidente poder e autoridade. Foi assim na famosa transformação de água em vinho durante uma festa de casamento, episódio sobre o qual Mien assim analisa:

Foi assim que o poder de Jesus sobre a naureza se manifestou pela primeira vez, não com sinais temíveis, mas em uma mesa posta, no meio das canções alegres de uma festa de casamento. Usou pela primeira vez o seu poder sobrenatural quase por acaso, para que não se tornasse triste um dia festivo. Afinal, ele viera para dar aos homens a alegria, a plenitude, a vida 'em abundância'. (p. 78)

Há, ainda, a célebre cobrança do amor incondicional pelos outros, recíproco, a começar pelos inimigos, como resultado dessa sua concepção universal do ser humano digno de respeito e reconhecimento. Além do "oferecer a outra face" ao agressor, Jesus contribuiu também na história da construção do Direito como "domesticação da vingança". Sua concepção de irmão e próximo rompia com a noção corrente: irmão e próximo passava a ser qualquer um, sem relação com sua posição ou comunidade de origem. A compaixão, a solidariedade, as ações para com os outros eram os indicadores dessa condição de irmandade ou proximidade. Esses sentimentos e ações recíprocos deveriam nortear a normatização da vida coletiva,  as relações jurídicas, como se verifica na seguine passagem: 

Nos códigos pagãos a punição muitas vezes era mais pesada do que a própria infração. (...) "Olho por olho, dente por dente". Jesus distinguiu com nitidez o direito penal de uma justiça baseada em outros princípios. Para todo mundo, é natural odiar seus inimigos; mas os filhos de Deus devem vencer o mal com o bem, devem lutar em seus corações contra o sentimento de vingança. Não só. Devem desejar o bem daqueles que o ofendem. Esta é uma tarefa bastante ousada, um modo de manifestar uma força interior autêntica (...).


E as belas palavras de Jesus:

Se amais só aqueles que vos amam, que mérito tereis com isso? (p. 96)

Tem-se aqui muito mais do que a recomendação de princípios técnicos que tornem justa a justiça. Na fórmula mesma da lei devem inscrever-se princípios de reciprocidade humana, isto é, o sentimento claro dos laços que aproximam os membros dessa humanidade comum. Jesus fazia uma cobrança singular, pois uma tal tarefa, como diz o intérprete, deveria expressar uma grande força interior.

Na sua trajetória, Jesus fez inúmeros convites, endereçados democraticamente, sem distinções. Certamente em todas as culturas, um convite feito a alguém, a uma festa, a uma confraternização, a uma partilha, a um trabalho, a uma  ação coletiva, a uma ceia... é a expressão, por excelência, do reconhecimento da pessoa em seu valor, em sua dignidade. Sobretudo, em sua individualidade. É, assim, uma relação entre sujeitos.

Todos, por certo, já vivemos a tristeza de não sermos convidados. Bem a propósito, o colega Jean Hébette relatava dias atrás o depoimento de um pescador que entrevistara durante uma pesquisa de campo. Era um participante de um movimento social em defesa de lagos contra a pesca predatória no município de Porto de Moz, à margem do rio Xingu. O entrevistado manifestara seu orgulho de estar sendo convidado por muitos para participar de eventos, de reuniões dentro e fora de sua localidade e de seu município.

Os convites do aniversariante Jesus não foram dirigidos a um sujeito passivo, como se sabe bem. Aceitá-lo era dar um grande passo, laborioso, implicava compromissos que não eram leves, pois se tratava de construir o Reino de Deus. Na história humana  foram muitas as visões diferentes - e os embates e as guerras - quanto ao que significa este Reino, como construí-lo. Muitas interpretações conflitantes, que enfatizaram determinados ângulos ou interpretações, em detrimento de outros, ortodoxias em lugar de diálogos e de ecumenismo. Tudo bem conhecido.

Independentemente da crença específica que se tenha, ou não se tenha, é  notável que a data do Natal é símbolo de tanta coisa boa. Queiramos ou não,  entre os povos  seguidores do Cristianismo e, mesmo em outros, a rotina muda.  É certo que para uns mais do que para outros. A mensagem daquela biografia que hoje se relembra, é forte. É forte no que ela tem de universalismo, de apreço pela humanidade e, notadamente, ao combinar de modo tão peculiar o interesse pelo coletivo e, dentro deste coletivo, também pelo mais particular, o mais humilde - basta que lembremos as passagens sobre a alegria da volta do filho que partira, a ovelha desgarrada... Nesse sentido, a gente sente e, humildemente, pensa compreender a grandeza dessa construção e dessa herança. 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

O chefe político recupera o mandato

Destaque político de hoje: os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) decidiram liberar nesta quarta-feira (14) a posse do ex-governador do Pará Jader Barbalho (PMDB) no Senado. E lá se vai para o Congresso Nacional mais uma vez, quem é talvez o político paraense de maior brilho, de maior projeção nacional, mal se desembarançando de um emaranhado de processos judiciais, de denúncias, de suspeitas, efim, de um imbroglio que se colou à sua figura de modo inseparável nas últimas décadas.

Foi para ele que dei meu primeiro voto. Ele fazia então oposição ao regime militar, membro do MDB, escrevera um pequeno livro chamado Guerras a Vencer, que exibia na capa uma fotografia da exuberante floresta amazônica. Um político promissor, combatente contra as trevas da época de pleno apogeu do modelo desenvolvimentista da fronteira amazônica. Tinha preocupações com justiça social. 

Ao longo dos anos, com seus sucessivos mandatos, seu poder político e econômico cresceu exponencialmente, em boa parte graças a seus méritos pessoais e políticos, aos quais acrescentou "tino empresarial" que lhe permitiu amealhar fortuna. Foi crescendo, também, sua habilidade no trato com os eleitores, notadamente com o enorme eleitorado de baixa renda, junto ao qual soube desenvolver um estilo de liderança carismática. Seu status político, seu capital simbólico nos termos do sociólogo Pierre Bourdieu, mistura gratidão, reciprocidade e reconhecimento de um político "que faz, apesar de...", que trabalha, age. Tradicional e moderno ao mesmo tempo. Muitos políticos até então eram peças decorativas, quase inertes fora do ciclo eleições, mandato discreto ou sumido, reeleição. O ex-governador planejou. Fez governo itinerante. Chegou a presidir o Senado. Quantas casas humildes no interior do Pará, de norte a sul, ostentaram calendários com a fotografia do líder nas paredes quase nuas?

Em paralelo, foram crescendo em relação a ele e a seus próximos as suspeitas, denúncias e processos relativos a malversação de recursos públicos. Esses processos ao mesmo tempo que chamuscavam a respeitabilidade da figura pública junto ao eleitorado fiel, iam desvelando um conjunto de práticas que constroem o poder político, um amálgama de relações e compromissos públicos e privados, de atos mais e menos claros e lícitos. Em torno de si, esses componentes obscuros do poder foram ficando particularmente nítidos por causa da magnitude de sua figura e dos postos que galgou na hierarquia do Estado. Traziam progressivamente à tona parte do engodo inscrito nas relações políticas nesse nível.

De uns anos para cá, seus mandatos têm se concentrado em se safar das acusações e processos. A grandiosa figura, por vezes, parece esmirrada sombra do passado, a se debater em defesa não mais de uma honra, mas de salvamento da carreira política. O que sobra para cumprir a missão confiada nas urnas? E, ainda assim, seu capital eleitoral se mantêm extraordinário. Os acordos interpartidários para cargos majoritários passam necessariamente por ele, um fiel da balança inescapável. Mesmo que forçado a cobrir o brilho próprio, ou emprestá-lo a outrem.

Ainda colhendo os frutos de sua popularidade, retoma agora o mandato no Senado. Para que batalhas?


segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

Emprego em Belém e o ponto de ônibus

O sentimento de alívio com o resultado do plebiscito mal se define e me vem à mente dois episódios durante a minha atual procura por uma empregada, ocorridos um na semana passada e outro no último sábado. Duas candidatas entrevistadas, uma residente na Terra Firme e outra ao final do Quarenta Horas não aceitaram a oferta. A justificativa que apresentaram foi exatamente a mesma: suas casas ficam longe do ponto de ônibus. Como em alguns dias a jornada vai até 19:30, ambas alegaram que nesse horário é muito perigoso fazerem o trajeto do ponto à casa.

Não é surpresa entre nós, em muitas cidades brasileiras, esse tipo de barreira. Mas, de todo modo, se a gente parar para pensar, é sempre chocante. Uma baita limitação à livre circulação. Em Toronto, no Canadá, as mulheres conquistaram o direito, a partir de uma certa hora da noite, de solicitarem aos motoristas de ônibus para pararem onde elas querem descer, ao longo do percurso do ônibus, mesmo que seja fora do ponto. Descendo mais próximo do destino, evitam se exporem a assédios. 

Longe, tão longe do Canadá, as pessoas por aqui se acostumam a esses limites cotidianos que usurpam um direito humano tão básico, todo dia, minando a própria idéia de que se tem aí a negação de um direito. É um toque de recolher discreto, sem nome.

Os dois pequenos casos que presenciei podem não ser "representativos", afinal tantos trabalham até tarde, tantos estudam, enfrentam as barreiras e conseguem uma ascensão social. Mas, parte do preço que pagam é desprovido de razão, é irracional como muitos aspectos da nossa urbe.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

A valiosa pobreza

Com o plebiscito batendo à porta, clima de eleições, novamente ascende o tema da pobreza para o centro dos discursos. Talvez com mais intensidade do que nos pleitos eleitorais normais. Fala-se mais da pobreza agora pois é em torno dela e das propostas para atacá-la que se estrutura o cerne dos argumentos pró e, na defensiva, os argumentos contra a divisão. Fala-se abertamente das responsabilidades do Estado no campo da saúde, habitação, saneamento e educação, especialmente em Belém. "Pobres" são entrevistados de ambos os lados e, obviamente, sua indignação é igual. 

O que irrita é constatar que, muitas vezes, pessoas comuns que clamam pela ação estatal contra a situação de pobreza e se sensibilizam com os discursos "sociais" reclamam de ter de pagar impostos sobre a renda, do alto valor dos impostos  cobrados etc. Uma choradeira. Por vezes a desculpa é a corrupção, que desvia parte do que é arrecadado; mas, se der, sonega-se. Por outro lado, quando se trata de políticas de redistribuição direta de renda, os julgamentos costumam ser pesados: o mercado deve ser o caminho; receber sem trabalhar estimula a acomodação, estimula a ter mais filhos etc.etc. Eu tenho que defender o meu

A pobreza assume um alto valor no mercado eleitoral; seu voto é decisivo num contingente de eleitores onde ela impera. Mas a incoerência nas representações e atitudes continua. Afinal, os espaços sociais que se frequenta, os equipamentos coletivos que se utiliza  - escolas, transportes, atendimento médico...- são separados nesta sociedade dual. E o Pará, para onde vai? Um incauto pode, com razão, ser cativado com os apelos a favor do sim. E ver a mudança pretendida não passar disso.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Ainda sobre pescadores

No meio de um turbilhão de compromissos com relatório de pesquisa, viagens, resto de aulas e correções, o que está quase me fazendo suspender o blog, encontro essas palavras do Mario Quintana:

Senhor! Que buscas Tu pescar com a rede das estrelas? 


E ele vem com mais essa:

Mas que haverá com a Lua, que, sempre a gente a olha, é com um novo espanto?


(do livro Mario Quintana. Para viver com poesia. Seleção de Márcio Vassallo. Ed. Globo, 2010)

Pobre da gente que, com a correria da vida, acaba nem olhando para o céu! 
Que perda!

domingo, 27 de novembro de 2011

Pescadores no Encontro da Rede de Estudos Rurais

O Grupo de Trabalho Formas de participação de pescadores artesanais na gestão ambiental: potencialidades e limites, que compõe a programação do 5º Encontro da Rede de Estudos Rurai, objetiva

Promover a discussão sobre a gestão ambiental participativa de recursos naturais comuns, visando uma crítica da teoria e da prática, focando particularmente o caso dos pescadores e pescadoras artesanais em diferentes situações e regiões do Brasil. A discussão contempla pescadores especializados e polivalentes, como os ribeirinhos, extrativistas e agroextrativistas.

O GT se propõe a acolher trabalhos que tratem dos seguintes temas: experiências de participação na gestão territorial e de recursos naturais de populações locais, sejam pescadores exclusivos, sejam categorias que pratiquem outras atividades e estilos de vida além da pesca, a exemplo de ribeirinhos e agroextrativistas; experiências de participação em diferentes territórios e instituições de gestão: comitês, conselhos e reservas ambientais de uso sustentável, inclusive as Reservas Extrativistas e de Desenvolvimento Sustentável; experiências de gestão participativa local na forma de acordos de pesca; análises enfocando a gestão em perspectiva de gênero; análises de formas de associação, organização, ação e mobilização de pescadores artesanais em suas diferentes expressões, em diferentes regiões e situações de conflito, em prol da sua participação na gestão dos territórios e recursos de que dependem; formação dos atores sociais da co-gestão pesqueira; reflexões teóricas e metodológicas sobre os conceitos de gestão participativa, co-gestão, gestão adaptativa e outros que explorem as conexões entre participação e gestão de recursos pesqueiros .

5º Encontro da Rede de Estudos Rurais

O 5o Encontro da Rede de Estudos Rurais será realizado no Campus da
Universidade Federal do Pará, em Belém, de 03 a 06 de junho de 2012,
dando sequencia à construção de uma associação que reune pesquisadores seniores e jovens estudiosos do meio rural brasileiro. Volta-se a compreender, de forma crítica as transformações em curso no mundo rural, com destaque para o lugar dos camponeses e as suas mobilizações sociais, nessas transformações.


O tema geral do Encontro é Desenvolvimento, Ruralidades e ambientalização: atores e paradigmas em conflito. Destaca as profundas alteraçõesconceituais que vêm se acentuando e exigindo tratamento diferenciado noque diz respeito à relação entre ciência, sociedade e natureza. A página do evento é: http://www.redesrurais.org.br/

Cristiano Wellington Ramalho, da Universidade Federal de Sergipe, Naína Pierri, da Universidade Federal do Paraná e eu, Maria Cristina Maneschy, da Universidade Federal do Pará, estamos coordenando o
GT 8: Formas de participação de pescadores artesanais na gestão ambiental: potencialidades e limites. 

O prazo para envio de propostas é 16 de janeiro de 2012.

domingo, 20 de novembro de 2011

Uma forcinha contra a divisão do Pará

Agrego à mobilização contra a divisão do Pará, a determinada negativa de um estrangeiro. Pena que, ainda que vença o não - tomara! - não se trata de vitória, mas de evitar andar mais ainda para trás no desenvolvimento deste nosso rincão brasileiro. 




sábado, 12 de novembro de 2011

Sobre a divisão do Pará e os royalties do petróleo

Com o início da campanha eleitoral sobre a divisão do Pará, pode ser que nestas bandas alguma mobilização efetiva passe a ser vista. Para a maioria da população, na batalha diária, o sentimento de rejeição à divisão parece prevalecer; talvez até cresça a rejeição com a aproximação da data do plebiscito. Mas, sem grande empolgação, na medida em que, como indaga e responde a propaganda pro-divisão, o que vai mudar? Nada. Os argumentos pró-divisão em três estados apontam na mesma direção de mudanças insignificantes salvo que, neste caso, haveria uma grande perda de recursos para o Pará remanescente. E, segundo estudos sobre o tema, as novas unidades serão deficitárias. Ademais, sem aumentar a renda, para elas as novas funções de governo trarão pesados custos adicionais, problema que se amplia pela pouca transparência dos gastos públicos. Vale citar dados relativos ao Fundo de Participação dos Estados (FPE), analisados por Eduardo Costa em seu blog, na postagem Crônicas sobre o separatismo:

... com base na legislação vigente o estado do Pará teve direito a uma cota de R$ 2,3 bilhões em 2010, referente a cota definida em lei de 6,11% do bolo repartido. Havendo a divisão e mantido a atual legislação, os três estados (Pará, Carajás e Tapajós) dividirão esta fatia, sem aumento, portanto, do volume de repasses. 

São números incontornáveis. É também importante notar que não se está propondo mudanças substantivas na gestão dos novos territórios. Por exemplo, o que se prevê em formas participativas de governo? O que se propõe como modalidade de desenvolvimento territorial, que contemple a diversidade social e ambiental das distintas microrregiões? Como se está atacando a forte dependência da economia a algumas commodities (madeira, minérios, soja...) e o padrão tributário que penaliza rotineiramente a sociedade?

Enquanto isso, a discussão sobre os royalties do pré-sal, que questionam a solidariedade social da federação, o "pacto federativo", não nos anima. Agora, os governos dos dois principais pólos produtores, Rio de Janeiro e Espírito Santo, sabem fazer barulho. O contraste é gritante com o silêncio que costuma caracterizar os governantes e os representantes do lado de cá. Minério não se compara com petróleo, claro, o que contribui para reafirmar a invisibilidade ou irrelevância paraense no cenário político nacional. A moeda da conservação ambiental não tem quase curso nos mercados atuais, daí a irracionalidade que marca muitos usos da sua base de recursos naturais. Não obstante, as receitas de exportação amazônica atendem muito claramente aos interesses econômicos externos também, reforça a balança comercial, desde a colonização. Sem falar nos custos sociais da geração de energia.

O plebiscito não representa, pelo menos até agora, um momentum para debate coletivo sobre nossa organização social e política, sobre seu padrão de gestão pública e de redistribuição de renda, a começar dentro do próprio Estado.

Propagandas sobre feias

Na mesma linha da piada assunto da última postagem, topei com a seguinte propaganda em um cartaz de uma revendedora Peugeot em Belém. Ladeada por duas figuras femininas de biquine, uma magra e uma gorda, desponta a frase seguinte: Quem você levaria para uma ilha deserta? a top model ou a sogrona? Compare: Faça o mesmo na sua garagem.
Difícil acreditar que quem criou a publicidade pense em atrair consumidoras para os carros.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Piadas sobre feias

Ultimamente as piadas, pelo menos na TV, têm se voltado com especial frequência para as mulheres feias. Fazer piada sobre atributos corporais não é novo. Remonta ao nascimento das piadas. Mas, por que as feias entraram em alta agora no mundo das piadas para o grande público? Nem imagino. Tivemos há pouco o caso Rafinha. Ontem, as feias ganharam novo holofote, embora o conteúdo nada tenha a ver com a imbatível marca de mau gosto da piada sobre o estupro, que até na categoria humor negro era ruim.

No quadro Stand up nosso de cada dia, no programa Fantástico do último domingo, o assunto era "cantada de rua". A comediante Micheli Machado iniciou sua fala - que, diga-se de passagem, teve momentos de humor fino - com a seguinte questão:

Por que é que todo homem na rua olha pra toda mulher que passa? Se fosse só pra mulher bonita, ainda vai, porque a gente também olha pros homens bonitos. Mas homem não, homem não seleciona, teve peito e bunda, já está olhando. Olha. É bonita, é feia, tribubu, exótica...

Admite-se que esse tipo de observação dá humor, há quem goste. Mas, nessa lógica, se os homens não discriminam no olhar de macho, por que a moça se incomoda com isso? E, a julgar pelos risos, agradou. Pena. Por que não ser mais democrático no gosto?

Não pude deixar de lembrar dos quadros envolvendo anões, também um antiquíssimo recurso para fazer rir. Sempre me provocou um sentimento misturado, mais incômodo que graça. Sei que isso dá emprego, chances de aparecer, diverte alguns, certamente muitas justificativas existem para usar anões em papéis ridículos. Mas, no fundo, desconcerta, porque o engraçado aqui é a imposição, ou validação da característica da maioria sobre a minoria. Embora neste caso, trata-se da maioria em sua condição de massa, de gado.

A gente não precisa lembrar sempre da vida real ao escutar uma piada. Tira toda a graça. Por exemplo, lembrar de cenas na rua de homens cujos olhares para outros passantes, sejam homens ou mulheres, não são apenas elogiosos ou engraçados, mas também debochados, quase agressivos, quase uma reprovação a determinado modo de se trajar, ou andar. E esse olhar pode se traduzir na liberalidade que o olhador se dá de tocar, até de "passar a mão" em uma pessoa desconhecida. Prática triste. Concordo que certas realidades não precisam ser lembradas e interferir no consumo da piada. Basta rir. Mas bem que as piadas podiam ser um pouco mais imaginativas!

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Reconhecimento das Ciências Sociais: mais do que competição por recursos


Na página do CNPq consta a manifestação das entidades das áreas sociais por inclusão de estudantes dessas áreas no Programa de bolsas Ciência sem Fronteiras (CsF), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). Gerenciado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq/MCTI) e pela Capes, prevê 75 mil bolsas no exterior nos próximos quatro anos, nas áreas de engenharia, tecnologia e biologia. O  Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) enviou carta ao CNPq nesse sentido. Segundo seu dirigente: "Hoje, em todas as áreas das ciências sociais, há grupos que trabalham com o desenvolvimento da inovação tecnológica, com fármacos, com novas energias ou com o impacto de problemas ambientais. Tudo isso faz parte da inovação". Para a presidenta da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que assinou a carta da Anpocs, é uma contradição pensar em desenvolvimento e enfrentamento à miséria sem as ciências sociais.
 
Desenvolvimento tecnológico envolve, sempre, opções sociais e políticas, assim como repercussões sociais e políticas, que por sua vez tanto incluem como excluem indivíduos, grupos, sociedades. Da mesma maneira, geração de ambiente propício à inovação envolve dimensões culturais, sociais e políticas e, portanto, vão além da base tecnológica e econômica de per se. O contexto social é, então, um dado fundamental na geração e difusão das inovações. Redes sociais são um componente chave do processo de produção de conhecimentos. Hoje, mais que nunca, é preciso desenvolver as chamadas tecnologias sociais, tanto para promover conhecimentos específicos sobre o contexto da ciência e da tecnologia - indicadores sociais de desenvolvimento, indicadores de impactos ambientais, indicadores de vulnerabilidade social, por exemplo - quanto para melhorar e mudar a qualidade das intervenções públicas na organização social. Justa e urgente, portanto, a reivindicação das entidades.


sábado, 22 de outubro de 2011

Orientação sexual de um filho

Uma pessoa amiga relatou-me que seu compadre, pessoa muito próxima, contou-lhe aos prantos que o filho de 22 anos lhe comunicara sua homossexualidade. Um choque do qual ele ainda não se refizera. É claro que não vivi a situação e não tenho a pretensão de saber exatamente o que deve ser feito, a boa solução em mãos. Mas, ao ouvir o relato veio-me à mente a pergunta sobre o que fazia aquele jovem na vida, se estudava, se tinha um emprego ou trabalho que lhe satisfazia, ou se caminhava para tal, se tinha uma boa formação, alegria, valores, enfim, se reunia as condições ideais de uma pessoa preparada para enfrentar a vida com autonomia, o que todos almejam para os filhos. 

Por que a opção sexual parecia tão devastadora e dissociada de outras qualidades pessoais? Há muitas razões, evidentemente. Lidar com as diferenças é difícil, não é natural, mesmo que não haja intolerância ou preconceito, como era o caso daquele pai entristecido. A socialização não ajuda. Por isso, uma grata surpresa foi redescobrir hoje um singelo livro infantil de minha filha, na forma de versos, que se propõe a mexer nessa ferida já entre os pequenos: Na minha escola todo mundo é igual, de Rosana Ramos e Priscila Sanson, da Cortez Editora.

No caso da homossexualidade, sabemos bem que preconceito pode gerar intolerância que, não raro, vira violência. Ela reduz quem a pratica a uma condição próxima da selvageria, de um ser bruto, tal qual o ser humano que é capaz de comemorar a morte de alguém. Isso, a propósito das comemorações pouco convencionais de líderes ocidentais quando sabem da morte de inimigos políticos, nestes tempos de "primavera árabe". Tempos de fronteiras morais confusas. Ou melhor, mostras de que as fronteiras morais dos nossos mundos são sempre confusas.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Momentos do Círio e da cidade

Por ter esticado um pouco mais da conta a noite anterior, acordei mais tarde do que eu gostaria para ir assistir a passagem da Santa e curtir a cidade no seu dia mais especial.  O "núcleo da Berlinda" já estava terminando de passar pela Praça da República quando eu saí de casa e cruzei os onze quarteirões até alcançar a Dr. Moraes com a Nazaré. Consegui chegar alguns minutos antes da imagem passar por aquele cruzamento. Não consegui ver os anjinhos e nem promesseiros levando os objetos de sua promessa ou gratidão. Mas, no caminho, ainda consegui curtir um momento que adoro, que é experimentar as ruas do bairro cheias, um cenário oposto ao vazio demográfico dos domingos de manhã por estas bandas. Uma sensação imperdível. Muita gente andando, indo ou voltando da procissão. Andar sem medo ou desconfiança. Gente sem pressa, em grupos, em famílias. Uma oportunidade especialíssima de contemplar a diversidade social de Belém, que no dia a dia é uma cidade cindida. Fossos de infraestrutura e de condições de vida separam seus moradores. 

Quando a Santa passa, muitos braços se levantam em sua direção e seguem-se as palmas, numa "orquestração sem chefe de orquestra" nas palavras de um sociólogo, Pierre Bourdieu. A emoção do momento é arrebatadora. 

Eu estava posicionada a uma meia quadra da Av. Nazaré. Portanto, era um lugar onde quase não se escutavam as falas e cânticos dos alto-falantes da procissão. Assim, mais impressão causava aquela uniformidade à distância, aquela enorme reverência coletiva. Quantos são os pedidos, as promessas, os agradecimentos e os diálogos íntimos que cada um dirige à Santa e a si mesmo naqueles breves e mágicos instantes!

http://www.orm.com.br/

Sobre a maré humana, clique em Leia Mais abaixo.


sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Por um amor que partiu muito cedo


Esta postagem transcreve palavras de uma pessoa amiga, Ana Cleide, escritas para sua amada companheira que faleceu precocemente, interrompendo uma vida produtiva, plena de projetos e reconhecimento. Ana sofre a perda ainda recente e seu texto expressa essa dor aguda e, no momento, incurável. Mas, para além do sofrimento, suas palavras celebram a graça de um amor que se desdobrou em várias facetas de uma relação que vale a pena ser vivida, como o companheirismo, a amizade, as realizações comuns e as individuais, celebradas conjuntamente. Eis um trecho do poema que ela escreveu há alguns dias:

“Meu amor”/ “Minha vida”, era como nos chamávamos pública e intimamente. Em nossa casinha, em todos os lugares do Brasil e do mundo, onde quer que chegássemos, estávamos em ‘nossa casinha’, nossos corpos, onde morávamos juntas. Uma só estava no lar quando a outra estava ali junto. ‘Meu amor’ e ‘minha vida’ eram parceiras, companheiras, amadas,... amantes, amigas, colegas, sócias, namoradas, pesquisadoras, almas gêmeas, siamesas, taurinas, co-autoras, mulheres livres. Metade morreu. 

A Ana batalhadora que vejo pelos corredores da UFPA, sempre empolgada com o trabalho e com a vida, vai saber superar essa etapa da dor e fazer da saudade e da lembrança, a força para prosseguir em suas buscas, indagações, projetos e fazeres, para si e para outros com quem convive.

Rupturas e continuidades no reconhecimento político das mulheres

Dentre as justificativas para a  concessão do Nobel da Paz 2011,  o presidente do comitê, Thorbjöern Jagland apontou

'Não podemos alcançar a democracia e a paz duradoura no mundo a menos que as mulheres alcancem as mesmas oportunidades que os homens para influenciar o desenvolvimento em todos os níveis da sociedade'. 

Tem razão, claro, mas sob certo ponto de vista. Segundo o argumento, não se trata de questionar a fundo o  padrão de desenvolvimento, mas de igualar as oportunidades  de participar nele. Porém, justamente aí o argumento reforça as desigualdades entre homens e mulheres. Não se propõe a criticar o modelo de divisão sexual do trabalho que sustenta a ordem econômica. Ao contrário, o problema é dar condições para as mulheres participarem e, assim, se igualarem aos homens. E, de fato, são os homens que reúnem as melhores condições para operar nessa ordem, para se dedicar mais ao trabalho produtivo, à carreira, ao empreendedorismo e à empregabilidade , posto que eles são liberados dos cuidados com as pessoas, liberados das restrições culturais e socializados para agirem no mercado, a sacrossanta arena das liberdades. 

As mulheres, portanto, precisam ter acesso às oportunidades de adentrar no modelo socialmente valorizado, que é o da atuação na esfera pública, no nível da economia, da política, da cultura, da vida social em geral. Ocorre, porém, que o modelo funciona  porque a divisão sexual do trabalho e seus correlatos culturais asseguram que grande parte dos cuidados de que todos necessitam são assumidos no plano privado. Isto é, fazem parte dos atributos naturais da família e de seus membros mais talhados para a função, sobretudo as mulheres. Quando cuidados pessoais são realizados no mercado, além dos baixos preços atribuídos às funções pertinentes - exemplo, ensino infantil e fundamental, cuidados de saúe etc.  - também incidem aspectos delicados em certas situações, como a qualidade da atenção dada a pessoas idosas e doentes. 

Como construir uma organização social e econômica que efetivamente traga para o centro das atenções os cuidados com as novas gerações, com as pessoas em geral, especialmente com as pessoas mais vulneráveis, assim como as questões da produção e da vida plena para todos? Não como questões de mulheres, mas como questões políticas, de políticas públicas e de compromissos individuais e coletivos? Como fazer interagir de maneira mais dinâmica os papéis sociais de trabalhadores, de produtores e de cuidadores, aos quais todos nos dedicamos com maior ou menor intensidade em diferentes momentos de nossas vidas, sem que o exercício desses papéis seja fonte de desvalor, de subordinação ou opressão? A velha separação entre público e privado está aí para retirar de pauta boa parte dessas questões. Debates enviesados sobre custos previdenciários da maternidade e da paternidade muitas vezes esterilizam o significado social e cultural do que está em jogo: que sociedade queremos? que organização social e econômica? e o que queremos efetivamente que mude quando se reconhece os direitos das mulheres como direitos iguais?

Mulheres Nobel da Paz

As três ganhadoras do Nobel da Paz deste ano vêm de contextos onde além da democracia precária ou inexistente, a opressão da mulher é muito forte, o que se traduz nos déficits educacionais e de participação na vida social e política para as mulheres. Nesse sentido, em seu ativismo político, elas contribuem também para desconstruir os modelos culturais em suas sociedades e a desvendar os elos entre tais modelos e os sistemas econômicos e políticos.  Ellen Johnson-Sirleaf foi a primeira mulher a chefiar um país africano, a Libéria e, além de executar programas de educação especiais para mulheres, criou um tribunal para julgar casos de estupro. A assistente social Leymah Gbowee, também da Libéria, é mãe de seis filhos e reconhecida por seus esforços para o fim da segunda guerra civil no país, em 2003. Para tal, ela mobilizou mulheres cristãs e muçulmanas para a luta comum e incentivou-as a realizar as chamadas 'greves de sexo', rejeitando sexo com seus parceiros em busca de um objetivo. A terceira laureada - Tawakkul Karman - é iemenita, jornalista e mãe de três, diretora da organização 'Mulheres Jornalistas sem Correntes'. Há cinco anos lidera manifestações em prol dos direitos humanos e de poder para as mulheres, tendo sido presa por duas vezes. Nesses pequenos excertos de suas biografias, vê-se que elas ampliaram o horizonte da ação política.

As informações sobre as premiadas aqui apresentadas foram transcritas da página da BBC Brasil: As ganhadoras do Nobel da Paz.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Meu primeiro Mac

Vivi a transição entre a máquina de escrever - fiz curso de datilografia aos 16 anos, em um curso chamado TED ("tempo é dinheiro"!) - e o computador, o que me rendeu até hoje a facilidade de digitar com os dez dedos e poder, inclusive, conversar ao mesmo tempo em que digito. Devo isso ao TED. 

Assim, cedo me acostumei a escrever meus textos a lápis e depois datilografar. Que complicado era corrigir ou alterar um texto já digitado!  Inimaginável o corta e cola de hoje! Outro mundo! Além disso, eu não achava possível escrever um texto diretamente na máquina, mesmo a elétrica IBM, o suprasumo da rapidez na digitação, com fita corretiva, que começava a exibir incríveis memórias de várias linhas ou página inteira. A Olivetti competia com a IBM nesse mercado. Para mim, a primeira versão com o lápis e a borracha era uma etapa indispensável da criatividade. Não imaginava que bem pouco tempo depois essa ordem de trabalho seria suplantada pelas facilidades do editor de texto no computador.

Nessa época, final dos 80, essa linha de inovações maravilhosas que levaram da máquina manual às elétricas foi brutalmente interrompida. O computador pessoal começou a se popularizar. Não era mais restrito às grandes organizações e a conhecedores do sistema DOS, que parecia tão misterioso com suas profusões de palavras e códigos em uma tela escura. Lembro de quando prestei exame vestibular e fora advertida ao longo do ano pelos professores, sobre o cuidado que deveria ter ao marcar o cartão de respostas que seria lido pelos computadores, máquinas tão grandes quanto distantes.

O impulso extraordinário para a popularização foi dado com a interface amigável e o reduzido tamanho dos primeiros Macintosh, bonitinhos, fofinhos. Seus recursos visuais bem humorados e o fato de reunir na mesma caixa a tela e o motor, começaram a redesenhar nossa relação com o computador, com o trabalho e com a vida de uma maneira geral, pois iniciava então a grande alteração na distribuição do nosso tempo diário entre o trabalho e a vida pessoal. O computador entrou nas casas para ficar.

Enquanto estive na França, em cujas instituições de ensino o Mac conhecia grande expansão, não tive problemas de assistência técnica. De um lado, a máquina robusta praticamente não apresentava defeitos. De outro, colegas brasileiros da área da informática nos repassavam as últimas novidades. Outra característica de nossa era ia se firmando, a das inovações constantes e compulsórias, a exemplo dos anti-virus e das novas facilidades de programas. A dificuldade foi ao voltar para Belém, em que o número de usuários Mac contava-se em unidades. Quando meu primeiro computador começou a dar os primeiros sinais de cansaço, com cinco anos de vida útil, a peregrinação em Belém junto a técnicos conhecedores da marca não foi fácil. Por essa época, a Microsoft já conquistara o mercado com seus PCs, colhendo o sucesso da abertura do sistema Windows para diversos fabricantes, o que não acontecera com a Apple. A chave para a persistência no Mac era, então, o fato de que seu uso continuava muito mais fácil do que o PC e menos vulnerável aos vírus. Enfim, era uma questão de ser fã da marca. Quem estava habituado ao  seu sistema operacional achava irritante usar um PC. Até hoje uso um Mac. De vez em quando ainda peno para converter algum texto que recebo. Mas as vantagens superam esses probleminhas. E os sistemas hoje conversam muito mais entre si.

Em uma viagem ao Québec em 1997, tomei conhecimento de uma "associação de amigos do Macintosh", evidência de uma ligação à marca que ia além da funcionalidade ou gosto. Testemunho da singularidade e do gênio de Steve Jobs, uma aura que Bill Gates, seu maior concorrente, não conseguiu copiar, embora comercialmente a Microsoft tenha superado de muito a  empresa do antigo companheiro de invenções.


Memórias da máquina de escrever e meu primeiro Mac. Clique em LEIA MAIS, logo abaixo.


quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Namoros novos, velhas atitudes

Em seu tempo, a pílula anticoncepcional foi saudada como grande fator de libertação das mulheres, conferindo-lhes um controle inédito sobre sua vida reprodutiva e sexualidade. Contudo, essa novidade extraordinária, cultural, científica, tecnológica, mantinha a dominação masculina nessa esfera da vida, a tradicional divisão de trabalho que  faz recair sobre as mulheres os maiores ônus do planejamento e  do controle da natalidade. 

No caso da pílula, são elas que assumem sós os efeitos colaterais possíveis da sua administração por longo tempo. No caso da esterilização, a laqueadura de trompas é uma intervenção cirúrgica mais complicada que a vasectomia masculina, mas a primeira predomina numericamente. Essa prática se ajusta à visão naturalizada de que a contracepção é, em primeiro lugar, assunto de mulher. Aliás, para muitas pessoas a própria concepção é assunto principalmente da mulher, como mostram as taxas de mães solteiras sem parceiro conhecido e os abandonos de bebês em que só se tem notícia da mãe, a grande culpada. 

A vigência de tais valores evidenciam-se em esferas públicas, na carência de creches e outros equipamentos coletivos na maioria das cidades brasileiras, estruturas que facilitem a conciliação entre trabalho e maternidade, especialmente para mulheres de baixa renda. É certo que a lei procura trazer equidade a essas relações, mas a força dos costumes ainda manda nas atitudes e na definição de políticas públicas e privadas. Ainda manda na tolerância que se tem com as dificuldades cotidianas que mulheres pobres enfrentam nos postos de saúde em busca de cuidados para os filhos pequenos. Ou na prática de compra de votos femininos com esterilização, cada vez mais rara, felizmente. 

As mulheres no Brasil e em outros países conquistaram autonomia que  gerações passadas desconheciam. Deixaram de ser sujeitas aos ritmos das suas muitas gestações, ou de suas irmãs cujos filhos tinham de ajudar a cuidar, ou ter de casar com o primeiro namorado para abafar a vergonha da família e o incerto futuro como mãe e pai ao mesmo tempo.

Uma médica que atende adolescentes opinava estes dias que se a pílula fosse boa, sem efeitos, certamente já se teria inventado uma pílula para homens. Admirava-se ao constatar como as namoradas de hoje se submetem aos papéis tradicionais em matéria de relações sexuais, arcando com os maiores custos da contracepção. Equidade, responsabilidade compartilhada, nada disso. No início da vida adulta, elas aceitam geralmente de bom grado o lugar convencional, enquanto perseguem seus projetos e sonhos, que podem ser os mesmos dos namorados, pois os direitos são iguais. Mas as preocupações e providências para evitar filhos precoces não são iguais. Elas transam sem grandes culpas e experimentam a liberdade sexual sem mexer no script.

Os métodos contraceptivos temporários considerados mais incertos e arriscados, o preservativo e a tabela, são também os que  induzem à partilha mais equilibrada da responsabilidade entre os parceiros. Planejamento, autocontrole e sensibilidade um para com o outro são mais necessários quando se lança mão deles. São atitudes, portanto, que questionam mais a fundo os padrões comportamentais que se acomodam à pretensa sujeição das relações sexuais aos ditames da biologia. Pelo menos nesse aspecto são  mais avançados do que a pílula e os outros métodos centrados na mulher. Cultivam novas atitudes.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Frases da semana

Vamos construir as pontes do diálogo em vez de checkpoints e muros de separação.

Mahmoud Abbas,  Presidente da Autoridade Palestina, na ONU em 23/9/2011

Devemos construir um futuro para nossos filhos e netos e para nós mesmos.

Benjamin Netanyahu, Primeiro Ministro de Israel, na ONU em 23/9/2011 

Por que essas frases causam tanta admiração, sobretudo a primeira, ao lembrar quanto se investe em obras anti-futuro?

 

domingo, 25 de setembro de 2011

INSS e SUS: patrimônios do Brasil dual

  
Com certa surpresa li o conselho de Mauro Halfeld, na coluna Nossa Vida,  Revista Época de 6 de junho de 2011. Ele se referia ao investimento na previdência pública em resposta a um leitor de 55 anos, que nunca contribuíra para a Previdência e lhe perguntava qual o melhor investimento para chegar aos 65 com um complemento que lhe desse razoável tranquilidade a partir de então. A resposta foi direta: "não há no mercado privado nenhum plano que seja mais completo do que o do INSS", cujos benefícios não se igualam a nenhum plano privado. Sugeriu que ele passasse a contribuir pelo teto máximo de R$3.689 e só depois contratasse previdência privada ou outro investimento.  

A surpresa é porque, frequentemente, a gente não lembra do caráter universalista da Previdência brasileira. E, principalmente, não lembra por causa da nossa dualidade social. Quem pode, obviamente não depende só da previdência pública. Isso não é um mal em si, contanto que a pessoa que dela dependa tenha assegurada a dignidade própria da cidadania. Os adicionais ficam para quem quer e pode buscar no mercado. Mas não é assim, como se sabe. A maioria dos beneficiários da aposentadoria, por exemplo, batalha, e muito, para fechar a conta do mês. A dualidade é igual na saúde, pois o SUS - que fez 21 anos dia 19 de setembro - está aberto aos 190 milhões de brasileiros, mas quem pode paga plano de saúde, mesmo com as limitações de cobertura e os primeiros lugares que os planos geralmente ocupam nos rankings de reclamações de consumidores. Ainda assim, é uma marca da distinção de classe no Brasil ter acesso a um plano de saúde privado. Não tê-lo, é se expor às filas, longas esperas, problemas no atendimento que vão desde o trato com a burocracia à rapidez dos contatos com os médicos. 

O ex-ministro da Saúde Adib Jatene recentemente apontou o paradoxo do Sistema Único de Saúde (SUS). Gratuito e para todos, mas tem menos dinheiro do que a iniciativa privada gasta para atender menos gente. Notável patrimônio que chega à idade adulta muito combatido, maltratado, maltratante, o SUS é uma inegável conquista social no Brasil. Precisa que a "boa política" se volte para essa área da solidariedade social. No fundo, os sistemas de saúde e previdência questionam a estrutura da sociedade como um todo, a concentração da renda e a justiça tributária, em seu papel genuíno de redistribuição de riqueza.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Dilma na ONU e a pena de morte

No mesmo dia em que um homem de 42 anos foi executado com injeção letal nos EUA, pelo assassinato de um policial vinte anos antes, a Presidenta Dilma falava na ONU:

"O autoritarismo, a xenofobia, a miséria, a pena capital, a discriminação, todos são algozes dos direitos humanos. Há violações em todos os países, sem exceção. Reconheçamos esta realidade e aceitemos, todos, as críticas. Devemos nos beneficiar delas e criticar, sem meias-palavras, os casos flagrantes de violação, onde quer que ocorram."

Ao que consta na imprensa, havia lacunas que não permitiam a plena convicção de que o condenado era o autor. Daí os abaixo-assinados e os muitos pedidos de clemência.

A abolição da pena de morte é um avanço em termos de processo civilizatório. Exprime um  aperfeiçoamento geral do Direito, no que ele guarda das melhores tradições culturais, legados de conquistas sociais e políticas de muitos povos. Ampliação do reconhecimento da dignidade humana, inviolabilidade do corpo, o valor do perdão, a crença na capacidade de recuperação e ressocialização de criminosos, dentre outros, são valores que se associaram para a progressiva "domesticação da vingança".

Apesar dos problemas na segurança pública e de notórios desrespeitos a direitos humanos, o país está à frente dos Estados Unidos e de muitos países em desenvolvimento nesse plano jurídico. A pena de morte aqui foi abolida já no fim do século XIX. Falta acabar com as execuções "informais" e as práticas de ajuste de contas direto que ocorrem no Brasil profundo. 

Tirar a vida de alguém é sempre uma violência. Tirar a vida de modo planejado, racional, asséptico, em presença de uma audiência, de alguém de quem se cuidou para manter a integridade física e mental e que, por isso mesmo, tem a contribuir com a sociedade, pagando sua pena em vida... Não há justificativa.


domingo, 18 de setembro de 2011

Pai de 50 filhos ganha manchete

Hoje figura na página da UOL reportagem sobre um "idoso de 90 anos, pai de 50 filhos, 33 dos quais com três mulheres da mesma família, que moram na mesma casa com o patriarca".  Inusitada toda a história: o número de filhos, a família polígama... Mas as duas mulheres dele que tiveram, uma, 17 filhos e a outra, 15, é que são as maiores heroínas dessa história. Para ler toda a história, clique aqui..

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Os jovens e o desenvolvimento

Na Carta Capital, edição de 14 de setembro, uma importante matéria - Laboratório de revoltas - expõe os índices de desemprego atual entre os jovens na Europa, que têm servido de combustível para as revoltas de jovens em grandes cidades, sobretudo em bairros de origem imigrante e onde os níveis de escolaridade são menores. São redutos atingidos pelo desemprego com especial vigor, mas evidentemente o fenômeno não se restringe a essas áreas. Não recai, portanto, em "populações problema", que teriam características peculiares que permitam localizar nelas o problema. Os índices apresentados falam por si. Na média do continente europeu, dados de julho de 2011, 20,5% dos jovens entre 16 e 24 anos estão desempregados. Acima da média estão países como França, Polônia, Portugal, Irlanda, Itália e, os piores, Grécia e Espanha, respectivamente com 38,5 e 45,7%. Na Alemanha, cujo quadro geral não é tão ruim - 9,1% - em uma região considerada rica do país, 54% dos jovens desempregados estão nessa situação há mais de um ano. 

Estudos indicam a dureza que é enfrentar longos períodos de desemprego no início da vida ativa. Documento da OCDE aponta que "jovens que encontram dificuldades na obtenção do primeiro emprego tendem a enfrentar problemas  para conseguir vaga pelo resto da vida profissional".

No contexto brasileiro, penso em duas políticas relacionadas aos esforços de gerar empregabilidade para os jovens: as bolsas de estudo para ingresso na universidade e as quotas de vagas para estudantes de meios desfavorecidos. Elas inscrevem-se na perspectiva de focalizar categorias que sentem mais dificuldades de inserção profissional, pelos obstáculos maiores à entrada no ensino superior e pelo fato de que seu capital social (redes de relações) tende a ser menos produtivo em "indicações" ao emprego ou oportunidade de trabalho. 

Além das estatísticas de desemprego e subemprego, exibimos no Brasil as dolorosíssimas estatísticas de jovens presidiários, envolvidos com tráfico, com depredação de patrimônio público, com violência. Sinais de exclusões ao longo de suas vidas, negação de direitos em muitas circunstâncias. As imagens nos jornais de jovens cheios de vida, inteligências e talentos dilapidados, de cócoras em pátios de prisões, são eloquente testemunho do desencontro entre desenvolvimento e juventude. Fala-se em inovação, o que é super pertinente. Mas, também, quanta capacidade de inovar está sendo perdida com essa máquina trituradora econômica e social que incide sobre tantos jovens, todos os dias. A despeito de projetos extraordinários implementados de norte a sul, por comunidades, grupos, governos, na área de educação, de inclusão social de várias formas, o respeito à cidadania social permanece direito central, isto é, chances pelo menos aproximadas de estudar, de brincar, de fazer esporte, de sonhar etc. etc.  

Muita inventividade e empenho são requeridos para enfrentar o problema da falta de oportunidades para jovens, à altura. Na Europa, as medidas de austeridade para combater a recessão atingem em cheio essa camada da população. A OIT recomenda políticas que focalizem a criação de empregos a jovens, dada sua sensibilidade ao ciclo econômico: "são os primeiros a perder postos quando a economia piora e os últimos a conseguir trabalho quando há crescimento". Programas de treinamento, aprendizagem e crédito para novos empreendedores são sugeridos. No Brasil, tem-se ainda que focalizar essa massa de jovens que já caíram nos descaminhos da vida. Devemos isso a eles.

É possível o desenvolvimento?

Para onde caminham as sociedades e as economias neste início de século? A idéia de progresso já perdeu o sentido faz tempo. Foi trocada pela crença na possibilidade do desenvovimento para todos. (Ver Declaração da ONU sobre Direito ao Desenvolvimento) Esse ideário também já enfraqueceu muito, mas ainda se fala, meio sem jeito, na partição do mundo entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, como que a relembrar de nossa capacidade ou interesse em forjar um destino comum para os habitantes do planeta, destino melhor, é claro. O sentido dessa distinção está meio enveoado, não se vê luz no fim do túnel que aponte um caminho plausível para todos, como manifestantes gritam em praças mundo afora. O esgotamento do ideário desenvolvimentista não é algo a lamentar por si só. Porque também não seria mais uma obrigação de caminho a ser seguido. O direito de escolha, o direito à diferença e, consequentemente, o direito de levar o tipo de vida que se considere digno de ser vivido (nas palavras de Amartya Sen), poderia ser um ingrediente central. Valores desse tipo fermentam as idéias de desenvolvimento sustentável, socioambientalismo, democracias participativas, multiculturalismo e autonomia. 

Mas, a inextricabilidade dos destinos nacionais continua firme, nas relações econômicas e políticas, na diplomacia e na falta que ela faz nas muitas guerras e conflitos bélicos. A "locomotiva" da China e suas repercussões nos ritmos de atividade econômica, a crise, que foi hoje pela manhã expressa na fala da presidente do FMI de que as economias emergentes não vão passar imunes... Continuamos no mesmo barco. Porém, como indica o belo artigo de Luiz Gonzaga Belluzo (A crise como ela é), retornamos ao velho ideário liberal da autoregulação pelo mercado, que Karl Polanyi analisou com maestria no livro A Grande Transformação.  As palavras de Beluzzo merecem destaque, pois ele mostra que a aceitação fácil das idéais subjacentes aos remédios liberais bloqueia a criatividade na busca de soluções novas.

"... o cidadão atropelado pelas erráticas e aparentemente inexplicáveis convulsões da economia não acredita no controle de seu próprio destino. As medidas de combate às crises, por exemplo, são capazes de destruir suas condições de vida, mas o consenso dominante trata de explicar que, se não fora assim, a situação pode piorar ainda mais. A formação desse consenso é, em si mesmo, um método eficaz de bloquear o imaginário social e promover a paralisia política, numa comprovação dolorosa de que as formas objetivadas da economia adquirem dinâmica própria e passam a constranger a liberdade de homens e mulheres". (Carta Capital, 14/99/2011)

O preço desse bloqueio (político e cognitivo) quem paga somos todos nós, que temos em comum o desejo de construir, no tempo que nos é dado viver, uma vida digna, boa, produtiva, com quem se ama, seja numa aldeia no Xingu, seja no deuxième arrondissement em Paris.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Há dez anos, Bush e a mesquita

Como muitos, neste 11 de setembro lembrei-me do que estava fazendo quando vi as cenas na TV de uma das torres gêmeas incendiando. Foi no intervalo de uma reunião no então Mestrado em Sociologia da UFPA. Pela TV ao fundo da sala, pensei tratar-se de um incêndio em um prédio, com aquelas duras imagens de pessoas desesperadas à janela. Só ao longo do dia fui sabendo do atentado de proporções extraordinárias.

Bush, que incrivelmente foi beneficiado em sua reeleição, dois dias depois do atentado visitou uma mesquita, respeitando os rituais muçulmanos. Uma atitude que cuidava, em meio à dor, de delimitar o campo da resposta civilizada, mantendo-se os princípios da tolerância e do respeito às diferenças. Mas, como sabemos, foi só um lapso de grandeza em meio a uma série de "políticas" de vingança que mataram muitas vezes mais do que os atentados. Troca de ódio por ódio, longe de produzir o que se disse nos discursos: o país ficou mais seguro com as medidas tomadas. Tolerância, diplomacia faltam hoje como ontem em relação àquela porção do Oriente de onde se originou uma grande parte de nossa herança cultural.
 

domingo, 4 de setembro de 2011

Fragmentos de Samuel Becket em Belém

Uma iniciativa muito especial está ocorrendo no Teatro Claudio Barradas, da UFPA. É a encenação, neste fim de semana, com entrada franca, de uma peça de Samuel Becket, dos seus Fragmentos de Teatro I e II. O título da peça é retirado da fala de um personagem: “Quantos infelizes ainda o seriam hoje se tivessem descoberto a tempo em que ponto estavam”.

Cheguei nessa peça meio por acaso, pois tinha ido assistir ao musical "Máquina, a história de uma paixão sem limites", na sala 5, no mesmo teatro. Como não havia indicações claras sobre a sala, acabei entrando no Quantos infelizes... Havia um pequeno cartaz no guichê de ingressos, mas pensei que pudesse estar indicando a peça de um outro dia. Enfim! Errei e fui ver a peça do autor que desenvolveu um olhar mordaz sobre a sociedade, sobre o vazio ou o absurdo de vários aspectos da existência. 

Claro que o começo não foi fácil. Em primeiro lugar, fiquei um tempo assistindo a uma peça pensando ser outra, até que me dei conta do engano. Então, confesso que senti falta de uma introdução para poder mergulhar no texto, uma voz em off que introduzisse o espectador no seu clima. Este clima estava bem reconstruído por sinal, uma penumbra enevoada que lembrava uma fria noite de uma cidade européia, talvez na Irlanda natal de Becket. Afora minha dificuldade e a sugestão que faço de uma pequena introdução para um espectador como eu, que não tem grande conhecimento da obra, acho que a peça é realizada com competência, com a profundidade e atmosfera que lhe cabem. Os atores deram muito bem conta do recado, entregaram-se com paixão em diversas cenas. 
 
No Fragmento I, um homem de costas está posicionado ao fundo. A silhueta se percebe pelo jogo de luzes e, no primeiro plano, dois funcionários quase idênticos, liam sobre suas mesas o que seriam passagens da vida daquele homem. Seria um repasse de suas memórias pela consciência. Podia ser a leitura que ele mesmo fazia sobre o seu viver e, como tal, sem uma lógica linear e, sim, com idas e vindas e as incoerências com que se tecem os fios de uma vida individual. O homem estava sobre uma janela, iria cometer suicídio e os dois funcionários estavam empenhados em repassar os dados de sua vida, alternando momentos de concentração na leitura a momentos em que eram tomados pelos sentimentos e emoções do personagem: seus medos, desejos irracionais, angústias, ternas inquietações e lembranças - por exemplo, ao mirar o céu, a curiosidade de qual das estrelas seria Jupter; dois passarinhos na gaiola em um momento da infância. A atmosfera é austera, o que importa são os pedaços daquela existência ordinária e plena de frustrações e de irrealizações. As dificuldades de relacionamento do personagem vêm à baila, assim como a solidão como característica marcante da biografia, em um mundo tão povoado.

No segundo Fragmento, dois "trapos" humanos de uma grande cidade conversam, um cego pedinte nas ruas, mau tocador de violino, e um homem de uma perna só, de aspecto também miserável, em uma cadeira de rodas. Na conversa que travam há poucas concordâncias e vários bate-bocas. Mas, ambos ressaltam aspectos críticos de uma ordem social vazia de sentido, lida por duas figuras à margem dessa ordem. Um toque de mãos e um desajeitado abraço revelam a sede de afeto de ambos, instante logo interrompido pela violência inerente às suas posições, pois a esperteza é como um mandamento naquele contexto. No entanto, aqui e ali rasgos de humanidade, como na preocupação do cego sobre a claridade do dia e sua consciência de que a infelicidade não era tal que justificasse acabar com a vida. Quando ele tateia procurando seus poucos pertences espalhados pelo chão, o outro lhe pergunta para que servem aquelas coisas, ao que ele responde: para porra nenhuma, mas eu gosto delas! Alguma semelhança com relações que temos com algumas de nossas coisas? Também aqui um texto complexo, duro, que por vezes fustiga o espectador. A esse propósito, vale a pena rever o filme Dodeskaden, de Akira Kurosawa, que  focaliza igualmente um personagem de rua em uma metrópole.

Detalhes da produção e da equipe estão no blog  O Senhor do Vazio. Também, na matéria Mergulho na obra de Samuel Becket há informações interessantes sobre a produção, seu diretor e o dedicado elenco. Em vários momentos, a representação é brilhante. Uma importante realização cultural em Belém.


segunda-feira, 29 de agosto de 2011

Visitas do Alcaide de Belém

Não pude evitar a surpresa ao deparar hoje de manhã na TV com uma propaganda do Alcaide ressaltando que ele está "visitando a comunidade, para ouvir seus problemas e buscar soluções". No caso de hoje, o bairro do Telégrafo. Ao fundo, as cenas de sempre de carinhos, afagos, mãos passadas nas cabeças alheias, escuta dos moradores ao pé do ouvido. Pergunto: visita é novidade que mereça propaganda na TV? E nada é dito sobre que soluções se vislumbra, quanto mais sobre algum plano de intervenções. Claro que na administração vigente, o princípio da participação demcrática para nortear políticas públicas não vigora. Melhor é a visita à "comunidade", caridosa, sensível, boazinha.  Nada que diga respeito a direitos e deveres. E pelo visto, esse tipo de visita parece algo raro, daí a peça publicitária. É preciso registrar o extraordinário.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Precário atendimento de urgência

A investida da imprensa sobre o episódio dos bebês mortos e a omissão de atendimento à mãe na Santa Casa foi impressionante. A despeito de "quem" sejam os culpados - inclusive a falha de gestão apontada pelos médicos - o depoimento dos funcionários na ambulância foram muito contundentes, indicando que a mãe não foi examinada para checar a urgência da situação.  Vale ressaltar a coragem da médica ao não se esquivar da imprensa, como frequentemente ocorre em situações do tipo. Contudo, são antigas  por aqui as reclamações de mães que procuraram hospitais públicos com o que lhes pareciam sinais de parto e não foram atendidas. Sobretudo, que foram mal atendidas. Para muitas, resta tomar um taxi (caro para a maioria que se encontra nessa situação) e voltar para casa ou buscar atendimento alhures. 

Um desfecho positivo, se é possível usar esse termo no caso, seria sacudir atitudes culturais arraigadas no atendimento a pessoas que dependem da saúde pública, tratadas rigorosamente dentro dos limites da gestão burocrática, ou dos recursos disponíveis para a área: não tem vaga, não tem leito, não tem ficha, não tem atendente ou especialista no dia marcado, remarque sua consulta (para daqui a alguns meses), mesmo se veio do interior etc. etc. De que tipo de apoio precisam as pessoas nessas horas? De que tipo de escuta e orientação?

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

Viagens com Árvore da Vida

Achei um grande deleite o filme Árvore da Vida. Sendo um filme econômico em falas, dá margem para o espectador elaborar sua própria reflexão e atribuir sentidos, ao mesmo tempo em que segue a narrativa. Por isso senti o filme como se fosse uma viagem por temas que, no fundo, nos interpelam a todos. De um lado, o filme mostra flashes da vida de uma família de classe média em uma pequena cidade, ou subúrbio americano na década de 1950, através das memórias do filho mais velho, já adulto. Sua vida adulta, de profissional bem sucedido, passa-se em uma grande cidade da qual apenas se vê a uniformidade das fachadas em vidro dos edifícios, altíssimos, dando idéia de ambientes ascéticos, puramente funcionais, orientados para a racionalidade tecnológica e econômica. Nada mais é dito sobre o contexto. Nesse ambiente, ele reflete sobre a superficialidade da vida presente. Esse quadro urbano contrasta com o ambiente da sua infância, onde se desenrola a maior parte da trama, cheio de árvores, meninos brincando, cenas do lar, da mãe brincando com os filhos, escola, jardins, quintais, cachorros e gatos, beira de rio, uma aprazível quietude, as muitas lembranças marcantes da infância, inclusive o episódio da morte precoce de um amigo. Não aparecem muitas relações para além do círculo familiar.

De outro lado, viaja-se nas muitas imagens da Terra e do espaço, que vão da formação de células primordiais aos confins do universo. Músicas suaves convidam o espectador a se deixar levar e impressionar com a imensidão dos processos da natureza e, ao mesmo tempo, a pensar sobre vida, sobre tempo, o tempo cósmico e os tempos geológicos. A notar as passagens sobre os dinossauros - por vezes arrancaram risos na platéia - que se inscrevem nessa linha de enfoque sobre o tempo.  Gostei particularmente das sequências que focalizam vidas embrionárias. Nesse turbilhão, a trajetória de uma família e os laços com pessoas queridas, sobretudo as que se foram. Foi inevitável a pergunta: temos um lugar especial nessa arquitetura imensa, pelo simples fato de desenvolvermos a capacidade de interpretá-la, de nomeá-la e classificá-la dentro de complexos esquemas de valores? 

Esse conjunto de cenas são embaladas por falas curtas que a mãe dirigiu aos filhos, ou escutou de professores, sacerdotes, conselhos sobre amizade, amor, Deus, trechos de orações, trechos bíblicos e questões sobre nós outros, no cosmos.  Por vezes a música silencia e sons naturais de ondas e de erupções vulcânicas e solares completam a percepção da grandiosidade universal. As palavras da mãe são sentidas de forma mais aguda pelo fato de que, logo ao início do filme, um carteiro traz-lhe a notícia que o filho do meio (de três filhos) acabara de falecer, aos 19 anos. As perguntas que ela lança sobre onde ele estaria, as palavras que endereça ao filho em algum lugar, assim como as questões que o protagonista se faz, são temas muito humanos. Pode-se dizer que são temas universais no contexto das sociedades modernas, que "desencantaram" seus cosmos, notadamente através dos conhecimentos científicos e tecnológicos para perscrutar a natureza, mas não suprimiram as incertezas e as incógnitas.

É possível que o filme envolva elementos da biografia de seu realizador, Terence Malick, uma formação religiosa rígida, a relação tumultuada com o pai autoritário, envolvido em alcançar sucesso profissional como técnico em uma indústria, mas tendo sufocado uma vocação para música. E, de repente, desempregado. Sua figura é oposta à da mãe, lembrada como a amorosidade em pessoa. Imersa no cotidiano familiar e o amor aos filhos, ela se conecta com  dimensões profundas da existência.

Os ângulos de filmagem dos personagens são muito próximos dos rostos e dos gestos, de uma notável beleza. Mesmo que algumas vezes eu achasse que o filme estava demasiado longo, além da ausência de uma sequência claramente estruturada, ainda assim é uma grande viagem. Uma viagem exterior e interior, abordando questões e inquietações humanas com uma magnífica técnica.  Assim eu vi o filme.