domingo, 15 de abril de 2012

O filme Xingu e o Brasil

Xingu é um grande filme. Além de primorosa realização do ponto de vista dos artistas, dos personagens locais, de fotografia e roteiro, retrata de modo sensível grandes protagonistas da formação da sociedade brasileira, sertanistas e indígenas, em um período histórico no qual o Brasil ainda se descobria a si próprio. Descobria-se habitado por uma grande diversidade de povos remanescentes da devastação colonial, mas tal diversidade não era considerada trunfo, sequer riqueza cultural para um país mestiço que pretendia caminhar a passos largos para o desenvolvimento e se voltava então a incorporar suas fronteiras à oeste; em breve, já sob o regime militar, chegaria à Amazônia. 

O governo federal, no início dos anos 1940, estimulava a expansão territorial imbuído das noções monolíticas de desenvolvimento como produção, particularmente via agropecuária extensiva. Nesse projeto, a diversidade étnica era etapa a ser vencida na construção da nacionalidade. Se não era mais o tempo da expulsão ou da subordinação pura e simples dos indígenas, suas aldeias deviam contudo ser contactadas, conhecidas e suas populações integradas. E as terras ancestrais, de que eram os donos - como compreenderam desde logo os Villas-Bôas - seriam entregues aos verdadeiros agentes do progresso, fazendeiros e exploradores pioneiros que se incumbiriam de inseri-las nos circuitos de mercado.

O filme inicia com a chamada de homens para comporem a expedição Roncador-Xingu, à qual se juntaram os irmãos Villas-Bôas. Eles se alistaram como peões, curiosamente escondendo sua escolaridade elevada. Movia-os o gosto da aventura de chegarem a terras não alcançadas pelos brancos, salvo os representantes das frentes garimpeiras, que mantinham há muito tempo relações de exploração com os nativos. O alistamento mudaria suas vidas para sempre, assim como mudaria a vida dos grupos contactados, para o bem e para o mal. O filme retrata com delicadeza os dilemas humanos e as pressões políticas e econômicas que os irmãos viveram, reconhecendo-se parte do "veneno" e do "antídoto" que atingiam os grupos indígenas. "Tem algo neles que se perde para sempre quando são encontrados", frase famosa de Cláudio, dita quando enfrentavam o dilema de terem de contactar os Kreen-akarore, cujas terras seriam atravessadas pela Transamazônica. 

Nos limites de um filme, Xingu capta de forma competente a complexidade da questão indígena e da solução encontrada na época, que foi a criação do Parque Nacional do Xingu, depois Parque Indígena do Xingu. O filme refere as articulações que Orlando Villas-Bôas teceu no centro político nacional e que culminaram com a decretação do Parque, em modes então palatáveis (um território "nacional", que contribuiria para proteger a "fauna e a flora"), ainda que "maior que a Bélgica", para desespero dos primeiros simpatizantes da idéia no âmbito do governo. Aborda, também, os dramas dos índios, sujeitos a deslocamentos compulsórios, pagando o altíssimo preço de sua falta de imunidade às doenças dos brancos. E os dramas dos irmãos, confrontados com escolhas trágicas para assegurar ao menos parte dos direitos dos povos.

O filme focaliza os primeiros encontros das expedições com membros de sociedades que mantinham língua e tradições próprias. Os artistas que representaram os irmãos Cláudio, Orlando e Leonardo trasmitem ao espectador o que deve ter sido muitas vezes sua atitude de maravilhamento com aquele contato humano inédito. Eles transmitem um olhar generoso, de genuína simpatia, abertura e reconhecimento do valor daqueles outros.

A última cena, a visão de um jovem Kreen de pé, no que seria talvez seu primeiro encontro com brancos, é inesquecível. Inicialmente ele é visto em corpo inteiro, todo pintado de negro, de porte imponente. A câmera se aproxima até captar seu rosto e se demora no olhar, grave e enigmático a mirar os sertanistas, como que a aceitar a abertura do diálogo proposto a partir dos objetos que eles vinham deixando na mata. Pressente-se um olhar aquiescente mas pleno de condições, não submisso, como sói acontecer no encontro entre desconhecidos que se dispõem primeiramente a se entender e não a pegar em armas, respeitadas as respectivas integridades. Mas, aquele encontro inscrevia-se no enredo pré-definido da expansão da sociedade nacional. O filme termina ali, sendo a cena seguida dos seguintes dados demográficos: dos 600 Kreen à época do contato, apenas 79 sobreviveriam. 

Os irmãos Villas-Bôas recebem uma grande homenagem com o filme, 50 anos depois da fundação do Parque do Xingu.

4 comentários:

  1. Primorosa análise, professora. Uma boa pedida para discutir a semana.

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  2. Obrigada Geldes. De fato, um deleite o filme. Um abraço.

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  3. Que bom que vc arrumou um tempinho para escrever esse belo texto, Cristina. Agora irei assistir o filme. Abraço

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  4. Oque o autor dessa critica aponta como um ponto de identidade entre o filme Xingu e outro filme do diretor? E as demais pergunta

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