sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Da Sabedoria da Criação e nossas trevas históricas

Nossa forma de enxergar o mundo e de vive-lo é uma construção social. O mundo que conhecemos não é tudo. Nem é o essencial. De fato, nosso real é cheio de contradições e de negações. 

Talvez tardiamente adquiri a convicção de que as escrituras "sagradas" são fonte de conhecimento e, sobretudo, de conhecimento crítico sobre o que existe. Na tradição bíblica, nossa origem é representada totalmente diferente do que construímos historicamente. Somos filhos da Sabedoria, da Luz, do Verbo... como nos ensinou João no Prólogo de seu Evangelho: "No princípio existia a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus. Tudo foi feito por meio dela, e sem ela nada foi feito. O que estava nela era vida, e a vida era a luz dos seres humanos. Essa luz brilha nas trevas, e as trevas não a venceram" (Jo 1, 1,5). Então, no cerne da Criação estavam a vida e a luz. É uma bela representação, que nos assimila ao saber do Criador.

João disse, no mesmo texto, que os seres humanos não conheceram a luz que fez o mundo. Ou seja, perdemos ou esquecemos nossa ligação original com a sabedoria e, por fim, tomamos as trevas como o caminho a seguir, o real. Por vezes as trevas parecem vencer - basta ouvir os noticiários, por exemplo. Mas, o real é justamente o oposto do que aprendemos a viver. 

Na perspectiva bíblica, o Cristo nos trouxe  novamente a Palavra que está no nosso eu profundo: o amor. Ele a expressou nas parábolas como as do filho pródigo e do bom samaritano, assim como no episódio do apedrejamento da adúltera ou no encontro com a samaritana perto do poço de Jacó. Amor, perdão e acolhimento independentemente das diferenças de classe ou etnia, das posições, do que se tenha feito ou cometido... amor e perdão em primeiro lugar. Essa "fórmula" aberta a todos traz nossa verdade, para além das nossas escuridões. Foi assim que em seu evangelho João se referiu pela primeira vez a Jesus: "E a Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós". 

A Palavra encarnada era redentora: "Ela deu o poder de se tornarem filhos de Deus a todos aqueles que a receberam (...) Porque de sua plenitude todos nós recebemos, graça e mais graça". Tornar filhos de Deus a todos, significava reconhecer em todos a mesma origem. O apóstolo Paulo falaria muitas vezes da nulidade das classificações sociais. Em Gálatas, ele veio a dizer que não havia mais romano, grego, judeu, homem ou mulher. Ou seja, as classificações não possuem substância. Expressam as trevas que deixamos ocupar o lugar da luz. 


Em 1 Coríntios 6,19, Paulo fez a seguinte pergunta: "Ou vocês não sabem que seu corpo é templo do Espírito Santo, que está em vocês e que vocês receberam de Deus? E que por isso vocês não pertencem a si mesmos?". Essa fala é forte. Ela nos interpela individualmente, chama cada um a cuidar de si como de um bem precioso do qual não somos donos exclusivos Recebemos a vida e o corpo como uma graça a honrar e cuidar. E, por conseguinte, somos chamados a cuidar dos outros, iguais em morada do Espírito. Nunca um outro é nossa propriedade. Nunca objeto de nossa dominação. Pois em última instância seu "dono" é o Criador, Sabedoria e Luz. Essa é a substância que nossas histórias negam. Ao afastar a luz, enxergamos as trevas como o real. E, portanto, respondemos mal aos desafios da vida, às carências e dores, sem buscar inspiração na Palavra daquele Filho do Homem que armou sua tenda entre nós. Isso significaria dedicar nossas inteligências e riquezas a cuidar dos outros e da nossa "casa comum". Saúde, cultura, fruição, conhecimento, oportunidades, partilha... esses são os nortes da realidade.


Certo que construímos as declarações de direitos universais, construímos sistemas legais inspirados por certa noção de que cada ser humano tem algo de sagrado e, portanto, de intocável. De digno. Jesus sempre fazia questão de agir e refletir sobre os menores dentre os menores, um mendigo cego, um leproso, uma mulher com hemorragia há doze anos, uma samaritana casada várias vezes, uma adúltera, um pecador arrependido, as crianças etc. Ninguém está excluído da mesa farta do amor. Não por acaso ele começava o resgate da humanidade caída pelos que estavam mais em baixo, mais sofridos e esquecidos. 

É assim, por exemplo, que Maria grávida de Jesus, falaria em seu cântico: "Minha alma exalta o Senhor (...) Ele dispersou os arrogantes de coração. Derrubou dos tronos os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos..." (Lucas 1, 46-51). E em outra passagem surpreendente do Evangelho de Lucas, conforme ouvi em uma liturgia, a apresentação de João Batista é feita assim: " Era o décimo quinto ano do império de Tibério César. Pôncio Pilatos era governador da Judéia. Herodes era tetrarca da Galiléia (...) Anás e Caifás eram sumos sacerdotes. A palavra do Senhor foi então dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto" (Lucas 3, 1-2). Ou seja, passando pelos grandes da história, a palavra de Deus foi a um homem no deserto, que pregaria um batismo de arrependimento, um início de mudança de vida e de valores das pessoas, para receberem a maior dádiva que viria: a Luz salvadora de cada um e de todos. 

Nossa lógica em geral é orientada pelas trevas, isto é, pelo que é passageiro e sem raízes. Pois, como entender nossas respostas coletivas às crises? As guerras, externas e internas, que travamos?

Escrito algumas décadas antes dos Evangelhos, um pequeno livro da Bíblia chamado Sabedoria, abre com a seguinte frase: "Amem a justiça, vocês que julgam a terra". E mais adiante, consta a seguinte recomendação: "Não busquem a morte no erro da vida de vocês, nem provoquem a ruína com as obras que praticam, pois Deus não fez a morte, nem se alegra com a destruição dos seres humanos. Ele tudo criou para que exista. As criaturas do mundo são sadias, e nelas não há veneno de ruína. O mundo dos mortos não reina sobre a terra. Porque a justiça é imortal" (Sb 1, 12-15). 

Não foi Deus, então, que criou a morte. Na nossa narrativa bíblica, ele é provedor de vida. Além disso, vemos que a morte não reina. O que permanece, nossa rocha dura, é a justiça. Nós humanos construímos sociedades de risco onde o mais frequente, ainda, é a morte por causas evitáveis. Acreditamos ser essa a realidade, pois sentimos tão claramente sua opressão. 

Já a "negação religiosa do mundo" aponta para outra realidade. Ela fala que vida é graça e requer cuidado. Não nos pertence. É como um crédito divino. Na perspectiva bíblica, nossos próximos são todos, notadamente os diferentes, os fracos, os frágeis... A mesa posta e a taça transbordante, tão belamente descritas no Salmo 23, é para todo mundo. Porque narramos assim nossa vida, nossa criação e nosso destino? Quando assim o fazemos, expressamos a luz e a sabedoria que nos habitam.

Um dia pudemos acreditar que caminhávamos para sermos melhores. Porém, continuamos com sentimentos muito primitivos. E aderimos cotidianamente ao mal. Em certo momento de nossa história, talvez ainda na noite dos tempos, separamos duas dimensões: de um lado, nossas capacidades de progredir e de moldar o mundo; de outro lado, nossa tendência ao amor. Soltamos os freios da vontade de poder e dominação.

O mundo dos mortos é fortíssimo! O olho por olho continua, a acumulação para um amanhã que não controlamos move exércitos e sociedades. Mas isso tudo não corresponde ao real. Passará!

domingo, 16 de julho de 2017

Negação do real e Palavra divina

Nessa segunda década do século XXI, temos pouco a comemorar. Do Brasil mais a vergonha do quadro social do que qualquer orgulho de nossos avanços. E temos orgulhosos feitos em cultura, arte, tecnologia, ciência, história... 
Tememos o desconhecido na esquina, toleramos desigualdade e injustiça, somos violentos no trato, ainda que cordiais e alegres. E reclamamos pouco do que fazemos com os jovens nascidos e vividos em situações de risco... a encher as prisões e inflar os números de delitos. Morte prematura do futuro. Não relacionar nossos medos e dores com a negação cotidiana a crianças e jovens de oportunidades de acesso ao patrimônio social. Negados lhes são uma viagem, um tratamento dentário, uma língua estrangeira, uma biblioteca, uma visita a um museu, um quarto de estudo... 
Tudo isso se reflete na trágica composição de nossas casas legislativas, com muitos insensíveis, salvo notáveis exceções. 
De outras bandas, também tem mil exemplos que derrubam qualquer narrativa da história como progresso. Vemos o desmonte "à la légère" dos sistemas de proteção social, base do conceito de cidadania. Herança que começou a se institucionalizar em fins do século XIX. Como aceitamos abrir mão do princípio de que cabe ao conjunto da sociedade - representado por Estados garantidores da cidadania - proteger os seus membros? Todos! Assegurar-lhes as condições básicas para participar na construção do todo pelo trabalho, pela vida, pela civilidade, pela solidariedade e pelo amor. Como esse princípio é abandonado, quando a própria própria proteção da vida alimentaria o mercado muito mais do que o princípio da escassez e da concorrência desregulada. E tantos estudos e pesquisas mostram a falácia de que justiça social é pura questão contábil. Redistribuição de renda e redução de desigualdade são questões contábeis e orçamentárias, mas submetidas a valores coletivos.
E o ideal da tecnologia que aliviaria a humanidade da pena de trabalhar e sofrer? Por que desemprego não se combate com redução de jornada para abrigar o maior número? Não tenho expertise para toda a resposta. Mas a resposta é técnica e, sobretudo, política. Envolve escolhas de sociedade. E muitos estudos competentes o provam.
Mesmo quem não suporta Marx admite a tese: nossas forças produtivas avançam incontinenti, sabemos curar doenças e fomes, produzir e usufruir em escalas e maneiras que nenhum "século anterior poderia sonhar". Mas, seguimos velhas conversas. Como consumidores, separamo-nos do cidadão que somos, nas palavras do cientista político Robert Reich, que nos vê como figuras cindidas: até nos preocupamos com o coletivo, mas queremos mesmo é fazer o dinheiro render mais. 
Lamento que uma de nossas fontes mais profícuas de conhecimento sobre o mundo e sobre nós mesmos, muitos consideram ultrapassada; no caso de nossa tradição histórica, as escrituras bíblicas. Nelas estão fontes de negação do real fortíssimas. Sobretudo, indicações de que muito de nosso "real" não tem substância, são "nadas" (expressão do teólogo Karl Barth); nadas pelos quais vivemos, morremos e matamos, como se fossem tudo.
Segundo esses textos antigos nossas lógicas são pobres. Por exemplo, na abertura do Evangelho de João está narrada nossa origem humana na sabedoria: "No princípio era a Palavra, e a Palavra era Deus. (...) O que estava nela era vida, e a vida era a luz dos seres humanos. Essa luz brilha nas trevas, e as trevas não a venceram. (...) A luz verdadeira que, vindo ao mundo, ilumina todos os seres humanos. Ela estava no mundo, e o mundo foi feito por meio dela, mas o mundo não a conheceu". (Jo 1, 1-11) E prossegue então reafirmando nossa igualdade absoluta, pois nos torna todos "filhos". Essa igualdade de origem é descontruída em nossa história. A vinda do Filho reafirma essa sabedoria original da qual emanamos: "E a Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (...) de sua plenitude todos nós recebemos, e graça e mais graça". Mas, a mesma negação de que fala João, reproduzimos. Não vemos a tenda.
Outra negação do real Maria expressa no seu cântico, inspirada pelo Espírito Santo (pela luz, portanto, que nos gerou a todos). Disse: "... Ele agiu com a força de seu braço. Dispersou os arrogantes de coração. Derrubou dos tronos os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu os ricos sem nada". 
Será que nos deixamos inspirar por essa inspiração de Maria? O que queria ela dizer com essa reflexão sobre a ação do Criador cuja "misericórdia perdura de geração em geração"? (Lucas 1, 46-53). Quem segrega somos nós, quem culpa somos nós, quem discrimina somos nós e quem hierarquiza somos nós. 
Mais tarde o Filho, convidando-nos a amar os inimigos, fez uma afirmação já presente nos antigos salmos: Deus não distingue; acolhe! "... amem seus inimigos, façam o bem e emprestem sem esperar nada em troca. Então a recompensa de vocês será grande. E vocês serão filhos do Altíssimo, pois ele é bondoso também para com os ingratos e maus. Sejam misericordiosos, como o Pai de vocês é misericordioso" (Lucas, 6, 35-36). Nosso dever, portanto, é a misericórdia, como nos "fabricou" a Palavra original. A exclusão, a hierarquia, não nos cabe. Não nos cabe nem nos gabar, pois Ele é bondoso também com os maus. Ou seja, calma lá! O que nos interpela é nossa condição original de Filhos da sabedoria, da luz. Como impregnar nossa lógica humana dessa lógica dialética? Penso que é preciso meditar profundamente sobre as palavras de João, de que rebemos dessa plenitude, graça e mais graça. 
Graça e mais graça é o que temos, o que usufruímos, o mundo, a natureza e nossos pares. Gratidão e reconhecimento do próximo são atitudes mais consoantes com nossas tendências profundas do que o fechamento, o exclusivismo, em suas traduções de racismo, xenofobia, discriminações etc.
Nestes tempos de autoridades desgastadas, importa refletir o significado do que disse Jesus a Pilatos: "Você não teria nenhuma autoridade sobre mim, se ela não lhe tivesse sido dada do alto" (João, 19, 11). E Paulo, anos depois, diria na Carta aos Romanos: "... não existe autoridade que não venha de Deus...". Parece estranho, mas é crítica radical! Ocupar função política no corpo social não é tarefa leve, nem particularista. Advogar-se poder "divino" e exerce-la segundo lógica humana pequena, fere nossa constituição mais profunda. 
Então, essas sabedorias estão aí, sempre novas, sempre mobilizadoras, a negar nossas lógicas e convicções sobre o real. Ela aponta para respostas aos nossos problemas que vão sempre no sentido da partilha, da solidariedade e da confiança própria da condição de filhos de um Pai misericordioso - a cada dia suas preocupações. Essa confiança se opõe ao desejo e à prática da acumulação, dos muros, da punição e da classificação. E, assim, libera nossa capacidade maior, a inteligência e a criatividade inspiradas na sabedoria original da luz. Por que narramos nossa origem de tão alto e construímos nossas sociedades de tão baixo?

sábado, 22 de abril de 2017

Feminismo não é anti-cristão, é sobre justiça

Feminismo não é ideologia de poder ou de destruição dos papeis sociais de mulheres e homens. É uma crítica a um dos tipos de desigualdade presentes em nossa sociedade: a desigualdade de gênero. É uma perspectiva de igualdade de oportunidades, de escolha e de influência na organização social. Não fosse essa crítica, mulheres não estariam hoje votando, trabalhando e cuidando das suas famílias, cada vez mais com o envolvimento genuíno dos companheiros homens. A valorização da paternidade como cuidado efetivo dos filhos pelos pais e mães, é parte desse projeto de igualdade social. Feminismo é, portanto, uma perspectiva de justiça e equidade. A influência da desigualdade de gênero transparece, por exemplo, no reduzidíssimo numero de mulheres no Congresso Nacional. Encontramos na vida de Jesus exemplos singulares de elevação da mulher, que ele deu muitas vezes, em um contexto histórico marcado pelo patriarcalismo, no qual a mulher era um ser de pouca importância e de poucos direitos. Já Maria em sua história, reverte nossa limitada lógica humana, que preza as hierarquias e o poder, não no sentido de serviço conforme aprendemos na última ceia do nosso Mestre. Para mim, então, feminismo não se opõe aos valores cristãos, ao contrário. Por outro lado, sei que feminismo é plural, com diferentes perspectivas. Mas, em todas as correntes ha um ponto comum: a busca de um mundo justo! E no qual os cuidados sejam valorizados e função de todos os humanos, independentemente do sexo.

quarta-feira, 5 de abril de 2017

A centralidade das margens

Sábado, na calçada perto do meu prédio vi um casal sentado à porta de uma loja já fechada. Pareciam moradores de rua. Na pouca luz noturna, eram vultos. De certo modo, aquela presença apagada num sábado à noite estava lá dizendo algumas coisas sobre nós, de como vivemos juntos na mesma cidade e tão distantes. Ou seja, no centro de nossa vida comum tem algo que não bate bem. 
Há um princípio do qual não conhecemos na prática todas as implicações. É o princípio da centralidade das margens, ou seja,o que é pequeno, marginal e fora da cena principal é importante. A margem, de fato, fala do principal de nossa vida em sociedade, que é uma vida pobre e mesquinha, pois valoriza o exclusivismo e os sinais de sucesso e poder. Então, para manter essa construção social não se olha, ou se olha pouco para as margens, as zonas sombrias para onde se empurra os derrotados, os incompetentes, os sem méritos, os mal nascidos e os que diferem do padrão. Não é a toa tanto medo e tanto risco. E nesse afã pela ascensão na escala humana, achamos plausível cortar direitos que oferecem alguma proteção aos vulneráveis, já que importa manter a máquina grande funcionando e quem for bom que vença. Que ordem é essa?
Acho que toda a caminhada terrestre do Mestre de Nazaré expressa o princípio da centralidade das margens. Nele vemos o Criador atento aos mais pequenos e aos marginais. Para Ele nenhuma vida era irrelevante. Nenhuma merecia ser sacrificada por projetos coletivos. Se todos contribuíam para o corpo social, portanto, todos dependiam uns dos outros. Leis nunca podiam se sobrepor à vida, daí as curas que fazia aos sábados, a intimidade com pecadores e impuros e o desafio que desconcertou os acusadores da adúltera, que não conseguiram jogar a primeira pedra. 
A vida vinha sempre em primeiro lugar. As imagens do pastor que se preocupa com cada ovelha, os salmos que falam de um Deus que sabe o número de fios de cabelo de cada um de nós, ou que conhece a palavra que queremos dizer antes de ela chegar na boca... Quantas pessoas terão lido essas passagens e experimentado no seu íntimo o ser reconhecido e amado? A festa do pai comemorando o retorno do filho é uma figuração precisa dessa visão de mundo que fez a síntese mais perfeita entre o individual e o coletivo, entre a pessoa, a sociedade e a história. 
Também é assim a narrativa do encontro de Jesus com a mulher samaritana à beira de um poço onde ela havia ido buscar água. Além de mulher, com a qual um judeu adulto não devia falar, ela era de uma etnia considerada impura e, ainda, tinha tido vários maridos. E, no entanto, foi ela a primeira pessoa a quem Ele contou ser o Messias. E aprendeu que esse Messias trazia uma água viva, capaz de saciar as sedes humanas para sempre. E, também, que o que importava de agora em diante, não era mais o culto prestado a Deus em templos especiais e nem a oferta de sacrifícios, mas o culto em espírito, ou seja, na vida cotidiana, uma espiritualidade viva. Seu alimento era essa Palavra que mudava radicalmente nossos valores e nos ensinava a olhar para o alto e para o lado com um novo olhar e um novo coração.
Em tudo isso estava presente a mensagem maior, a doação do Pai aos filhos. A partir dela não éramos mais dominantes e dominados, gregos ou romanos, judeus ou pagãos, homens ou mulheres... O poder maior não era o dos reis e dos impérios, mas o do serviço e da inclusão de todos no amor do Pai. Por isso Jesus disse a frase que ecoaria longe: meu reino não é deste mundo. Os reinos deste mundo não têm substância.
Que legado é esse que alimenta nossa memória coletiva e que ainda celebramos, passados mais de dois milênios? E, ao mesmo tempo, não compreendemos, pois a lógica é tão estranha aos nossos apegos mundanos! Aponta uma perfeição que preferimos pensar ser inalcançável. E então fica aquele abismo entre a profundidade da Palavra e o que vai na nossa prática. E muitas vezes praticamos uma fé intimista, sem efeitos solidários, na qual muitas vezes eu mesma me incluo. Assim, toleramos uma sociedade com tantas pessoas à margem. A vida plena é para todos, e não por nossos méritos, mas pelo amor do Criador, que aponta sempre para nosso potencial e nossa força. 

terça-feira, 7 de março de 2017

Tentando aprender


O Evangelho deste domingo (Mt 4,1-1) trata das tentações de Jesus no deserto. O diabo o convidou a transformar pedras em pão e Ele respondeu: "Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que sai da boca de Deus". 
2017 anos depois, quanto ainda limitamos nossa vida à matéria! Por isso, buscamos garantir de modo egoísta os bens da sobrevivência imediata. Por isso o medo! Medo de perder, medo de faltar... Então, acumular é a palavra de ordem. Mesmo quando a tecnologia multiplicou nossa força produtiva em escala inédita, temos medo. Se tivéssemos clareza de que o acesso aos bens - ali representado pelo pão - passa pela partilha, pelas regras de com-vivência, ao mesmo tempo que estaríamos provendo o pão de cada dia, estaríamos também produzindo e repartindo esses outros significados do nosso trabalho. É o que o texto de Mateus refere como "a palavra que sai da boca de Deus". 
Mesmo ateus sabem que as escrituras das religiões referem a uma vida plena, falam de força interior, de nossa capacidade de construir o destino último para o qual fomos criados já aqui e agora. Afinal, por que somos seres inteligentes e criativos? A fala de Jesus nega o mundo de medo ao qual estamos presos. Mundo assombrado pela escassez! Construímos economias de escassez. E, assim, respondemos mal aos desafios decorrentes dos eventos climáticos, das desigualdades, das doenças, dos ciclos e das incertezas da natureza etc. Respondemos com cercas, privilégios, matemáticas pobres, fechamentos, guerras, fronteiras... enfim, controles que geram mais carências e medo. Investimos energia criadora em exclusivismos e não em saúde e educação para o maior número. O fantasma da escassez e a lógica da vida só pelo pão - orientada para os bens e seu acúmulo - nos governam.
O diabo convidou Jesus a dominar os reinos do mundo e sua glória, assim como a ordenar aos anjos lhe salvarem de uma queda morro abaixo. Ele nem prestou atenção!. Essa é uma incrível representação de Deus, do Ser Supremo. É um Deus que liberta! Não assume o lugar que definimos como próprio da realeza, isto é, o lugar do poder. O poder do qual emana Jesus veio desde o início indicando que todos, desde o mais pequeno e frágil, são amados e considerados e, portanto, sagrados. Escolhemos o mal, não somos maus por natureza! Aprendi na homilia (penso ter aprendido) que teologicamente isso significa que não somos a fonte do mal. O mal vem de fora, escolhemos em liberdade aderir ao mal, mas não viemos com "defeito de fábrica". Não somos escravos do inconsciente ou das circunstâncias. Como seres humanos, cedemos à tentação do poder e, portanto, à tentação de dominar o outro, de nos impor... mas não somos intrinsecamente isso. O verdadeiro Reino não só relativiza os poderes daqui, como mostra que o poder verdadeiro não escraviza, não submete e não exclui... O poder que Ele dizia era o do Senhor Deus, o único a quem devemos prestar culto. É um culto libertador das amarras que construímos e reproduzimos há milênios, com mudanças próprias de nossa caminhada histórica. O que Jesus dizia ao diabo naqueles desertos, continua nos falando hoje de quem somos, de quem podemos ser, sendo a espiritualidade uma fonte de força inesgotável, água viva, ainda por explorarmos de modo pleno.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Trabalho e acumulação

Para o bem e para o mal, o trabalho é um meio de acesso à cidadania, a ponto de muitos julgarem mal políticas sociais destinadas a pessoas, ou a categorias de pessoas que não trabalham. Nele ancoramos boa parte de nossa identidade pessoal, social, auto-estima... E como dependemos do nosso "poder de compra", é uma barra pesada viver o desemprego. Por outro lado, a dedicação ao trabalho é uma justificativa fortíssima para o direito de acumular riquezas, mesmo em detrimento dos outros. 
Para repensar nosso mundo do trabalho e suas lógicas, a leitura litúrgica de hoje, do "Sermão da Montanha" (Mt 6, 25-34) é um convite. Me arvoro aqui a refletir sobre isso, sem pretender ser especialista em questões de fé, pelo contrário, muito menos a praticante fiel dessa Palavra. É uma reflexão apenas, de uma leiga.
Na Bíblia que tenho o trecho é intitulado "Aprender com as aves e os lírios" (Ed. Paulus, 2014, p. 1193). Jesus chama a não se preocupar com o comer, o beber ou o vestir, pois "a vida não vale mais que comida, e o corpo mais do que a roupa?". O Mestre mais uma vez usa a natureza para ilustrar sua mensagem. As aves e os lírios do campo, que não trabalham e, mesmo assim, mais belos do que qualquer realeza. Ele então nos incita a não centrar as preocupações no trabalho e na riqueza, mas a buscar o Reino de Deus e sua justiça, de onde então as coisas estariam garantidas a todos.
Se parece óbvio que somos mais do que as coisas de que nos servimos, na prática vivemos o contrário. Por que não conseguimos a confiança no Pai e não aproveitamos o mundo, seus recursos, a natureza que, associada à inteligência e criatividade humanas, é pródiga? Quando Jesus nos pergunta o valor da comida e das roupas, ele está chamando a atenção para nossa sacralidade - nossa vida não acaba aqui - e, portanto, para os valores de vida que orientam nossos trabalhos, em suma, a base material de nosso viver.  
Se trabalhamos como dom de vida, que não nos pertence, salvo para cuidar dela com a confiança de fazermos parte de um projeto maior, tudo muda. Mas como alcançar isso, se preciso saber se o que estou produzindo aqui e agora consigo guardar, para mim e para os do meu círculo? E, se eu não vigiar e juntar cada vez mais, não vou me apropriar e usufruir, e deixar para os meus herdeiros... Isso se dá no plano individual e, sobretudo, coletivo. Fronteiras, exclusivismos, tudo vem dessa mentalidade que não nos deixa viver como Ele convida: "a cada dia suas próprias preocupações!"
Somos mais que materialidade, somos seres espirituais, temos sonhos e símbolos, valores estéticos e morais, mas reduzimos nosso labor a apenas isso. A divisão do trabalho está ligada em tantas letras na Bíblia com a ideia da solidariedade entre os diferentes (ver as Cartas de Paulo). Mas, para muita gente, é só obrigação e pobreza. 
O trabalho é central. O Sermão da Montanha nos interpela a questionar o sentido forte que damos a ele. Como mudar o coração? O Mestre estava falando ao novo Homem e à nova Mulher que temos dentro de nós, iluminados que somos pelo Espírito Santo. Continuamos a trabalhar e, assim, a conquistar o mundo, aplicando o dom da inteligência, com liberdade. Ou seja, somos livres para construir o mundo, é nossa responsabilidade. Mas, desde há muito tempo, o fazemos com o velho pensamento e os velhos instrumentos! E isso nos encerra no ciclo do trabalho como sofrimento e da acumulação como horizonte.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Amar o inimigo?





As escrituras das religiões, além de testemunhos de fé, são fontes de conhecimento. Mais certo dizer sabedorias. Fudadas na espiritualidade, exprimem nossas maiores capacidades de ser e de fazer. Mesmo quando a caminhada histórica da religião agregou tons de dogmatismo, as fontes guardam lições e iluminam respostas à vida. Aventuro-me há pouco a conhecer a tradição cristã. Aventuro-me apenas. Cheia de dúvidas e vacilações.
Nosso ocidentalismo é cioso em separar saberes, ciência é ciência, fé é fé. É como também dizemos: economia é economia, mercado é mercado, sociedade é sociedade. Mas a separação absoluta nos empobrece como sociedade e, mesmo, como espécie. Afinal, que mundo é esse que temos a liberdade de construir? A abstração entre ideal e real, embora tão antiga, resulta nas tantas dores que acompanham os passos das civilizações e das pessoas: violências, vidas desperdiçadas, destinos sem destino... 
Nossas melhores realizações, nossas firmezas - é frequente a palavra "rocha" em textos de fé! - têm origens semelhantes: as esperanças dos povos e os sentidos que deram à vida e ao futuro. Elas se expressam nas obras humanas mais duradouras, monumentos, artes, conhecimentos e sabedorias que homens e mulheres de todos os tempos levaram consigo nas grandes viagens e migrações que moldaram nossos habitats. Hoje sabemos que até algumas florestas, paisagens aparentemente "naturais" resultaram de usos passados, de manejos ancestrais que contribuíam para a composição atual. Como disse o Papa Francisco, somos todos migrantes, passageiros. Loucura qualquer pretensão de exclusividade e de superioridade.
Nas leituras de hoje da liturgia católica, está a conhecida passagem de Mateus (5, 38-48), com a proposta: amar o inimigo! Era um corte radical com a lógica prevalecente até então e, principalmente, que impera até hoje. Imagine-se se deixar inspirar por isso na resolução de um conflito internacional! No mesmo texto consta ainda: "o Pai faz nascer o sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos". Como é possível? E os méritos? Que estranha lição essa de não fazer distinção, amar em primeiro lugar, pois Deus mesmo não distingue. Seria fácil, talvez, se o próprio Pai decidisse por nós! Beneficiasse só os bons. Mas não é assim. Nossa liberdade de escolha permanece até nesse plano. É um sinal de amor de Deus por nós, o de respeitar nossa liberdade? O amar, então, deve se manifestar em relações práticas, em atitudes, ou seja, em vida em conjunto, em projeto de sociedade que seja inclusiva, acolhedora... E o texto ainda conclui com outra frase famosa: "Sede perfeitos como o Pai celeste é perfeito!"
O espírito da mensagem não é para seres de outra galáxia. É para nós mesmos, construtores orgulhosos e soberbos de nações. O principal mandamento transmitido pelo Deus Encarnado, Jesus, foi o do amor. Não um amor abstrato, leis ou regras morais, mas sim qualidade das relações humanas. Se o primeiro mandamento de Deus era o do amor ao Pai, o segundo, colado ao primeiro, era o amor ao próximo, inclusive os inimigos! 
Essa lógica bebe da espiritualidade mais profunda e por certo está em diferentes religiões. Recusamos a priori de assumi-la, pois é demais! Amar o inimigo? Na mesma sequência de leituras, Paulo (1Cor 3,16-23) diz: a sabedoria deste mundo é insensatez diante de Deus. 
Ou seja, nessas mensagens não fica pedra sobre pedra, como disse Jesus. São convites fresquinhos, mais do que atuais. Em plena globalização, retomamos os muros, atualizamos conflitos armados, concentramos a renda e a dignidade, cortamos proteções. E nem lembramos que já bem antes, no AT, constavam as palavras de Deus a Moisés (também da leitura litúrgica deste domingo): "Não tenhas no coração ódio contra teu irmão (...). Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Lv 19, 1-2.17-18). É possível se inspirar nessas fontes? Em muitas passagens bíblicas constam reflexões diretamente indicadas a quem ocupa posições de poder. Convidam a abraçar a inspiração do Espírito Santo, que nos sopra essas verdades ao mesmo tempo estranhas, mas com tantas promessas de vida plena. Esse é um dos sentidos da Graça que temos. A vida e a liberdade de escolha não são frutos dessa Graça? Não atribuamos à vontade de Deus desgraças que são nossa responsabilidade! A palavra de ordem assim inspirada é a da solidariedade, da partilha e do acolhimento.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

A mulher e o homem em Genesis

No inicio de Genesis há duas narrativas sobre a criação. Quando se referem ao homem e à mulher, a primeira - que detalha os sete dias - é bem resumida: "E Deus criou o ser humano à sua imagem (...) macho e fêmea os criou". (Gn 1, 27). A segunda narrativa traz o relato da mulher formada de um dos lados do homem, que exclamou: "Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne!". E conclui o texto: "... estavam nus e não se envergonhavam." (Gn 2, 22-25) 
Segundo a versão da Bíblia que estou lendo, são releituras da mitologia assírio-babilônica pelos povos hebreus em suas lutas contra as opressões q viviam.
Séculos de história consolidaram a leitura desses textos como justificativa da posição subalterna da mulher. No entanto, é também clara um tônica de reciprocidade e dignidade de ambos. A universalidade da condição de filhos e filhas de Deus em um mundo já marcado por impérios expansionistas, é destacada. E a mulher é recíproca do homem, enfim, "uma só carne". Ambos estavam para usufruir do Éden.
O mundo nessa leitura é visto em termos de equilibrio dinâmico e supõe-se que as caracteristicas fisiologicas de ambos os sexos não dariam lugar a desigualdades, pois eram parte da ordem natural. Gravidez, menstruação, força física... São partes de um mundo a ser usufruído em comunhão.
As instituiçoes politicas, históricas fariam outras narrativas e releituras, consagrando a desigualdade de gênero. Infelizmente as proprias igrejas legitimariam esse princípio em suas caminhadas, mas há importantes mudanças em curso.
Por isso, vale reler essas páginas de nossos simbolos de origem. Lá estão os sentidos mais fortes de nossa condição, para além das mesquinhas instituições que criamos. Luberdade, igualdade e dignidade.
Os que escreveram as narrativas do Genesis exprimiram o Verbo, a Palavra de Deus. Somos seres iguais em direitos e no dever de cuidar da vida.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Nacionalismo anti pessoas e universalismo pró mercadorias


Esse é o nosso mundo. E nem nos damos conta. Abolir barreiras comerciais, viva! Mas abrir fronteiras para seres humanos, inclusive por razões humanitarias... Nem pensar! Esses imigrantes vem se beneficiar de nossos recursos, nossa previdência, como? Fecha fronteira! Muita exigência pra dar visto de entrada no país. Principalmente se o ser humano vier de país pobre e - loucura das loucuras - professar uma religião diferente! Somos todos doidos por aceitar um mundo tão maluco. Consumimos o q vem lá do outro lado do mundo, compramos o q for mais barato no mercado, mesmo se na linha de produçao tiver trabalho infantil do interior do Vietnam por exemplo. Viva o livre comércio! Posso até perder meu emprego pra um trabalhador na tela do computador em Bangladesh! Viva o comércio global! Abaixo a imigração! Os nacionais pobres, de países pobres, que se danem! Quem mandou nascer na periferia do mundo? 
O conceito de fetichismo da mercadoria, do velho Marx, ainda diz muito sobre nossa ordem social, agora em escala global. Nos relacionamos através das coisas, das mercadorias, sem ver as relações socias por detras, nossos verdadeiros vínculos sociais, que escondem exploraçao, concentraçao de riquezas... As mercadorias são como fetiches. O nacionalismo, que um dia teve sua razão de ser, hoje é um fetichismo... Fronteiras nacionais, um apego à tradição. Escondem mais do que esclarecem nossa real condiçao de interdependência planetária. Por isso preferimos protecionismo ao solidarismo global. Afinal, nos relacionamos com os cidadaos que povoam nosso mundo briguento, por meio das coisas, das mercadorias. 
Pensamos, muitas vezes, que religião atrapalha mais do que ajuda. Pena. Muitas delas contêm sabedorias das quais poderiamos construir siciedades de justiça. Na nossa tradiçao bíblica, temos o salmista há alguns milênios puxando a nossa orelha: feliz a nação cujo Senhor é Deus! (Sl. 33:12) Somos todos originários da mesma Criação! Que valor têm nossas nações pelas quais tanto matamos, morremos e infligimos sofrimento? Nesse mesmo salmo se disse ainda: Javé faz desaparecer os projetos das nações. (Sl. 33: 10) Somos nós os modernos? Quanto aprendemos daqueles povos mediterrâneos que reconheciam nossa irmandade global e clamavam para a utopia possível? "... E a bondade de Javé transborda em toda a Terra". (Sl. 33: 5). As viagens além mar levaram e ainda levam uma parte muito truncada dessa herança cultural

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Somos todos ganhadores, pois caminhantes

Compartilho com meus amigos este texto q escrevi dois anos atrás: A gente tende a pensar que é perdedor, por força de olhar para os próprios problemas e dificuldades e, então, se avaliar menor, pequeno, diante dos demais. No entanto, um pouco de atenção e se percebe que tantos têm suas lutas internas e externas, suas dores, fraquezas, medos e obstáculos. E, muitas vezes, precisando de nós e, como nós, de uma forcinha de fora para reanimar a força de dentro. Porém, no fundo, quando se olha para a própria caminhada com generosidade, é lícito concluir que se é vencedor. Não necessariamente porque já ganhou, mas precisamente porque está caminhando. A caminhada é humana, o que quer dizer que ela inclui vacilos, inseguranças, erros, fracassos, sentimentos de perda... O que mais importa é se ela é orientada por valores do bem, se se pensa em outrem assim como em si mesmo e se sonhos, desejos e ideais estão presentes. Não existem só vencedores e não existe segurança total. Existem os caminhos, existem os amigos e os entes queridos com quem os partilhamos e existe a vontade de não passar em branco na aventura da vida que nos é dado viver e que, como sabemos, vida que não nos pertence inteiramente. Ela se vai por circunstâncias que muitas vezes foge ao nosso controle. Daí a importância do cuidado com a vida, nossa e dos outros, lição óbvia mas distante de nossa ordem social cotidiana. É importante lembrar que as religiões representam cristalizações da busca humana em reconhecer e comunicar com o Criador durante a trajetória terrena e, nessa perspectiva, concretizar os sonhos e as aspirações de perfeição. Esta busca inclui, quase sempre a chamada para nossa força interior, nosso eu profundo que guarda o melhor de nós. Na tradição cristã, o apóstolo Paulo tem sempre uma palavra sobre isso, ele que travou árduas batalhas desde a conversão e que,ao final escreveu a bela frase: combati o bom combate. É dele também esta mensagem: "somos atribulados por todos os lados, mas não desanimamos; somos postos em extrema dificuldade mas não somos vencidos por nenhum obstáculo; somos perseguidos mas não abandonados, prostrados mas não aniquilados (...) embora o nosso físico vá se desfazendo, o nosso homem interior vai se renovando a cada dia. (...) Não procuramos as coisas visíveis mas as invisíveis; porque as coisas visíveis duram apenas um momento, enquanto as invisíveis duram para sempre". (Coríntios, 4) Essa fortaleza extraordinária, que moveu homens e mulheres extraordinários que contribuíram para moldar nossa história, é um tesouro a ser alimentado. Parece longe de nossas fraquezas diárias. Mas são balizas humanas. Um convite.