quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Socorro! E os peixes?

Na atual leva de reclamações sobre a carestia dos peixes nos mercados de Belém - afinal, a Semana Santa está chegando - as dificuldades que os pescadores enfrentam, no mar, para alcançarem o pescado, cada vez mais distante e escasso, são lembradas. É uma constatação importante. Espero que isso gere uma maior consciência entre nós, ávidos de pescada amarela, serra, dourada, filhote, pescada branca, camarão - para ficar na zona costeira - de que a pujança da pesca no Pará, seguidas vezes primeiro produtor nacional, deve-se  mais à fertilidade das águas do estuário amazônico, do que ao cuidado na exploração. Cuidado requer, dentre outras coisas, investimentos em infraestrutura de conservação e de comercialização, além da auto-capacitação das categorias de pescadores artesanais para administrarem sua produção.

Os peixes oriundos da pesca extrativa representam o último alimento de origem animal em grande escala sem manipulação humana, ou seja, ao natural, com todas as virtudes dessa condição. É um bem precioso! Ainda abundante entre nós, o que não é o caso para a maior parte dos recursos pesqueiros de grande interesse comercial no mundo, como divulga amplamente a FAO em seus relatórios anuais sobre o estado da pesca e da aquicultura. A aquicultura não substitui a extração, levanta questões ambientais e sociais, embora seja também uma frente produtiva vantajosa em muitos sentidos.

Na prática, o Pará não faz gestão pesqueira integrada. Não tem estruturas participativas, como conselhos, fóruns, mecanismos consultivos nos quais se desenhem políticas e instituições de gestão apropriadas, segundo critérios conhecidos e legitimados. Muito menos organizações de consumidores que venham ampliar os horizontes de tomadas de decisão no setor pesqueiro. Do lado dos consumidores, vê-se o peixe sair, estragar-se, faltar, encarecer, mas é como se a generosidade da natureza desse conta de renovar os estoques. Ou seja, sem crítica, sem maiores preocupações, sem demandas, sem protestos... Na costa paraense, as experiências de gestão pesqueira participativa que estão se fazendo nas reservas extrativistas marinhas, limitam-se às respectivas jurisdições. É necessário que seja assim, pois são instituições jovens, complexas no seu desafio de unir os vários atores locais e assegurar, junto com a promoção de pesca sustentável, os direitos territoriais das comunidades de moradores e usuários. Por outro lado, a administração pública do setor tende a se limitar a medidas específicas, como as que instituem os defesos anuais - aliás sem participação dos principais atores, daí os inúmeros problemas de malversação de fundos, desvios de objetivos etc. E há as intervenções em caráter de urgência, como a decisão judicial que há pouco mais de um ano proibiu a comercialização da carne processada de caranguejos, dentre outros fatores por falta de higiene no beneficiamento.

É notável que a concepção legal de pescadores artesanais ampliou-se, passando a incluir agentes em terra, com destaque para as mulheres. É notável, também, o reconhecimento internacional de que gestão pesqueira centralizada no Estado é ineficiente e que a gestão consistente carece de incorporar conhecimentos locais, conhecimentos tradicionais, em intercâmbio com os conhecimentos científicos, em mútuo enriquecimento. O Estado conta com cursos de engenharia de pesca, oceanografia e outros voltados aos ecossistemas aquáticos e seus recursos. Mas, permanece a questão: como articular os vários esforços de produção, de geração de conhecimentos, as demandas de movimentos sociais inspirados nos princípios socioambientais, em socorro aos peixes e, consequentemente, em socorro dos que deles dependem?

Vale lembrar, ainda, que há uma crescente compreensão de que há elos entre diversidade social, isto é, diversidade de comunidades que utilizam e manejam recursos pesqueiros em escala local, e a sustentabilidade dos estoques de peixes. Assim como se reconhece, em agricultura, que os monocultivos em larga escala em meio tropical são problemáticos, porque empobrecem os solos e a diversidade de espécies florestais, ao mesmo tempo em que sonegam direitos de populações rurais e concentram propriedade e acesso. Portanto, a diversidade de culturas não interessa apenas aos diretamente implicados, lá nos sertões. Na pesca, o elo também se faz presente. Comunidades costeiras que exploram recursos pesqueiros com base em diferentes contextos sócio-culturais, contribuem para a diversidade de espécies. Mas, além dessa noção, é preciso que os envolvidos, organizações de pescadores, organizações de pesquisa, grupos de consumidores e governos se constituam efetivamente como atores em um processo de gestão pesqueira compatível com a exuberância das águas, nas praias, rios, lagos e igarapés.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Questões sobre a condenação de Lúcio Flávio Pinto

Inacreditável a condenação do jornalista Lúcio Flávio Pinto a indenizar os herdeiros de um falecido super grileiro de terras na Amazônia. Conforme  explica a nota do Sindicato dos Jornalistas do Estado do Pará (publicada em http://pererecadavizinha.blogspot.com/):

"O dono da Construtora C. R. Almeida, uma das maiores empreiteiras do país, se disse ofendido porque Lúcio o chamou de "pirata fundiário", embora ele tenha se apossado de uma área de quase cinco milhões de hectares no vale do rio Xingu, no Pará. A Justiça Federal de 1ª instância anulou os registros imobiliários dessas terras, por pertencerem ao patrimônio público. A denúncia dessa monumental grilagem em terras paraenses é que motivou a ação movida contra Lúcio, agora obrigado a uma indenização 'por dano moral'". 

Lá se vão décadas de crítica ao modelo prevalecente de ocupação e uso de grandes extensões de florestas na Amazônia, com seus custos sociais e humanos; os esforços em grande parte vãos para fazer baixar as taxas de desmatamento e de mortes no campo [de que o Pará é campeão]; a busca, por sucessivos governos, de meios para o tal "desenvolvimento sustentável", capaz de acomodar pressões socioambientais e desenvolvimentistas. Na formação dos futuros operadores do Direito no Pará, inclusive, figura ao lado da disciplina Direitos Humanos, o Direito Ambiental. Então, como se explica tal decisão pela Justiça do Pará? A que ordem de valores serve? Sanciona que tipo de organização social? O que acontece com essa instituição que parece premiar o que contribuiu para o atraso do Estado, para sua espoliação, como se fosse um tiro no próprio pé? 

Independentemente da pessoa do jornalista, de sua contribuição inestimável para o conhecimento crítico das realidades sociais na região, uma decisão dessa natureza dói em quem tem esperança na reversão das tendências de pobreza e destruição ambiental que ainda sobressaem como características do Estado. A solidariedade a ele é merecidíssima.

Lúcio Flávio explica o processo em:
http://www.twitlonger.com/show/ftq7va
Mais informações em:
http://www.viomundo.com.br/politica/o-grileiro-venceu-lucio-flavio-pinto-tera-de-indenizar-herdeiros.html

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Um aniversário de 80 anos e algumas lições

Sexta-feira passada tive a honra, junto com meu companheiro, de ser convidada ao aniversário de 80 anos da Dona Catarina, mãe de uma amiga, que comemorava a data com seus oito filhos e filhas, muitos netos e já alguns bisnetos que a descendência da minha amiga já "produziu". 

O que me motiva a escrever sobre a festa - uma comemoração ainda incomum, apesar do aumento da expectativa de vida - foi a vontade de registrar que a saúde, a vitalidade e a alegria da aniversariante e dos seus provam mais uma vez que é uma felicidade e uma graça alcançar essa idade. Imersos nos problemas e frustrações cotidianos, muitas vezes contabilizando perdas, ou caindo numa das tantas barreiras no caminho, esquecemos que um dos objetivos nossos não é só viver, sobreviver, usufruindo e conseguindo. É, em uma medida importante, o que se quer comemorar caso presenteados com essa generosidade da vida e chegar tão longe (e com a memória e o coração em forma; coração, bem entendido, o músculo e o guardião dos afetos).

E, então, a gente fica sabendo de alguns detalhes da biografia da aniversariante, cujos parentes faziam também a alegria contagiante daquela festa quase sem álcool (só um pouquinho, bem discreto, trazido providencialmente para os mais renitentes apreciadores). Casada jovem, como convinha aos usos da sua época, sem grandes estudos, foi deixada após dezoito anos de casamento, com os filhos quase todos por terminar de criar. O marido havia sido pródigo em se apaixonar por outras durante o tempo em que o casamento durou. Imaginei, então, o que terá custado à aniversariante em trabalho, dedicação, esforços, negação dos próprios desejos para cuidar da prole. Soube, também, que uma de suas filhas adquiriu há muito tempo uma doença crônica que lhe traz grandes limitações. As várias poses para as fotos durante a festa, sobretudo aquelas em que ela figurava cercada dos netos, evidentemente com as risadas e barulhos típicos do encontro de uma família numerosa, fazia pensar no quanto aquele momento compartilhado dependeu da garra da aniversariante para atravessar longos anos sem o cônjuge para dividir tristezas e conquistas, pequenas e grandes. Ou seja, quantos e quantas teriam talvez sucumbido a uma depressão, atravessado a vida com amertume, reações compreensíveis, humanas.

Então, penso que o aniversário da Dona Catarina, "chefe" altiva de sua grande descendência ali reunida, junto com amigos, era também: uma comemoração à força pessoal e à capacidade de construir e manter uma família que se identifica e se relaciona como tal - como diminui o tamanho das famílias, novos desafios para se fazer laços duradouros; uma comemoração à oportunidade da vida plena, não propriamente pelos bens ou reputação profissional, mas pelos laços que se pôde tecer e pela chance - rara - de um dia poder avaliar, olhar para trás, lembrar dos que foram e dos que estão, e partilhar o dom da vida (aqui se encaixa bem a expressão religiosa). E, especialmente, a chance de agradecer. 

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Mensagens da greve de policiais

A greve de policiais em Salvador nestes dias é um desses acontecimentos que de súbito põem à mostra as precárias bases sobre as quais assenta a estabilidade da sociedade. Os imediatos abalos na chamada ordem pública, o aumento vertiginoso dos assaltos, lojas fechadas e shows cancelados, além da ameaça ao próprio carnaval, lá onde ele é tão curtido, seriam de deixar um estranho estupefato, um recém chegado que ainda guarda a capacidade que as crianças têm de se surpreender, assombrado. 

Afinal, que arranjo social é esse que basta um tempinho sem seu braço armado, dá sinais de desmoronamento? A pergunta não vem, porque estamos acostumados. Vem tristeza talvez, um engolir em seco porque, afinal, esse é o nosso mundo. Mas, não muito mais que isso. Dá vontade de dizer: este é o nosso paíz-zinho, não temos jeito mesmo. Mas, a coisa também vai além desta pátria.

O monopólio dos meios da violência nas mãos do Estado é uma conquista civilizatória, como a gente sabe. Contudo, a importância crescente que o braço armado - e as guerras - vieram a ter na manutenção do sistema-mundo, é uma característica que já foge ao sentido daquela conquista. Ela também diz sobre as bases "estranhas" que dão estabilidade aos laços globais entre nações e suas economias. Foi preciso aumentar cada vez mais os orçamentos de governo em segurança. Ameaças de rompimento das regras do jogo há muito tempo suscitam respostas armadas.  

O grau de dependência que se tem no Brasil das forças policiais, até para movimentações simples do dia a dia, como pagar contas ou sair à noite, exprime peculiaridades nossas, de nossa formação social. Nesse quesito, aliás, somos bem originais comparado a outros países em tempos de paz. E, nesse sentido, é claro que os profissionais da segurança pública aqui merecem salários dignos e condições de trabalho. Isso, independente do fato de que certos métodos no movimento - conforme aparecem nos noticiários - possam ser mais que questionáveis. 

Nesse ínterim, visitou Belém esta semana um representante da UNICEF. Na ocasião foi divulgado um estudo que mostra o Pará como um dos campeões em crianças fora da escola, situação mais crítica na faixa entre 15 e 17 anos de idade. Ao serem apresentados ao público tais dados, no jornal O Liberal de anteontem, em seguida exibiu-se a fala de uma mãe cujo filho nessa idade deixara a escola e passara do consumo à venda de drogas. 

Há obrigações urgentes com a segurança. Ao mesmo tempo, uma das pontas pelas quais se poderia atacar parte dos problemas que explodem nas ruas vai sendo secundarizada; isto é, uma educação que possibilite a tantos jovens fazerem escolhas quanto aos rumos de suas vidas. Ainda durante a visita, anunciou-se que na Região Metropolitana de Belém, até o final do ano, dez escolas públicas em tempo integral serão construídas. Grande notícia!