domingo, 22 de janeiro de 2012

Fora do ar temporariamente

Estarei fora do ar alguns dias pois estarei ministrando uma disciplina para um curso de pós-graduação em Biologia Ambiental. Não sei se terei acesso à rede. Assim, o Sociologando entra em recesso por alguns dias. Um abraço.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Da combinação de bares e telões com lutas

Moro bem pertinho de uma rua de Belém que tem muitos bares ("barzinhos" como se dizia antigamente), pelo menos um dos quais uma "espetaria". A rua costuma engarrafar nas noites de sexta e sábado, tantos carros, transeuntes, mesas nas calçadas... Há vários anos esses bares passaram a dispor de aparelhos de TV e de telões que exibem eventos esportivos, o que é um poderoso atrativo para os consumidores e fazem a festa dos fornecedores de cerveja. As concentrações de fãs em dias de futebol já são velhas conhecidas. Mas, nos últimos meses, tenho verificado com frequência a exibição de lutas nos telões dos bares. Como minha experiência na noite belemense se limita quase sempre apenas a passar na frente dos bares, de carro, acho bizarra aquela combinação de casas cheias, gente bem vestida, muitos jovens, conversas alegres e, ao fundo, dois caras se batendo e se batendo. Num vislumbre rápido, parecem lutas livres, sem regras, o que aumenta meu espanto e me dá a sensação de que o gosto popular está caindo! Sensação elitista por certo. 

Como a gente não deve dizer desta água não beberei, eis que nesta última sexta-feira, justamente noite da final de um campeonato da organização americana UFC no Rio de Janeiro (acabo de aprender alguma coisa da sigla), vi-me sentada em um bar até duas da manhã, assistindo a uma série estonteante de lutas de MMA (Artes Marciais Mistas), o tipo de lutas que eu pensava ser de vale-tudo, mas que tem lá suas regras. Ainda acho que devia ter mais regras, acho que não se devia bater na cabeça, por exemplo. O Vitor Belfort saiu com um olho tampado. Mas enfim, não é a total liberdade. A força física  necessária é fenomenal. A rápida sucessão de lutas em um campeonato da importância daquele, como pude compreender, não deixava ninguém indiferente. Ao contrário. A gente ia se envolvendo, mesmo que de início não pretendesse olhar.

A estranheza de observadora de fora, crítica daquela junção esquisita de diversão e luta, se dissipara e eu me vi então participando do ritual com todas as suas etapas, inclusive as conversas no dia seguinte sobre os momentos marcantes das lutas. Como se fosse futebol, muita gente assistira à luta e queria compartilhar suas observações. E eu até senti pena que não tivesse sido dia de luta do paraense Machida, que eu nunca vi atuar. Pelo menos dois brasileiros se destacaram, inclusive o que manteve o cinturão de primeiro lugar. 

No fundo, não nos distanciamos dos nossos antepassados de muitos séculos na apreciação de competições violentas. A isso somamos um gostinho de ver se destacando no certame alguém da nossa região. Desta vez, o amazonense José Aldo. Antes que eu me deixasse levar por uma euforia descabida, um espectador da mesa vizinha arrematou: o único defeito dele é ter nascido em Manaus!

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Reciprocidade e laços sociais

Marcel Mauss foi um dos grandes cientistas sociais, um clássico, visto como um dos pilares da moderna Antropologia. Recentemente, vem sendo redescoberto pela Sociologia Econômica, especialmente sua obra Ensaio sobre a Dádiva. Ele lançou um olhar original sobre as interdependências humanas, que fundamentam a vida social; as interdependências no plano material, que estrtuturam a divisão do trabalho e as trocas, assim como as interdependências no plano cultural e simbólico. Segundo sua análise, as relações sociais não são apenas funcionalidades, mas  símbolos, com vários significados, muitos não ditos. Uma relação não se esgota na função, mas implica sujeitos, considerações recíprocas, expectativas, estratégias e incertezas.

Uma das contribuições fundamentais do referido estudo está nos conceitos de dádiva e de reciprocidade, que constituem, conforme a análise de Mauss, a base dos laços sociais. Ele observou, notadamente a partir de materiais etnográficos de sociedades insulares do Pacífico e de indígenas da América do Norte, que as relações sociais entre pessoas, assim como entre grupos, envolvem, em primeiro lugar, a circulação de bens e serviços sob a forma da dádiva. Além de uma virada teórica no campo específico das Ciências Sociais, o autor atacava assim a perspectiva utilitarista em voga na ciência da Economia, que explicava a ação social, particularmente a ação econômica, pelo auto-interesse dos indivíduos. A equivalência nas trocas, via preço por exemplo, asseguraria, nessa ótica, a satisfação dos agentes econômicos que vão ao mercado para satisfazer seus objetivos e o fazem tanto melhor quanto menos obrigações extra-econômicas os vinculam. Marcel Mauss analisou o quanto a dádiva, o oferecimento de algo ou de um serviço, suscita a relação social, que se concretiza quando o destinatário aceita, recebe a coisa. Ao fazê-lo, expressa a aceitação do vínculo, do laço social que está sendo proposto e, por conseguinte, implica-se na reciprocidade. Por exemplo, receber um presente, realizar um convite, pedir um favor, oferecer um favor, são práticas simbólicas que engajam, manifestam consideração pelo outro e fundam compromissos recíprocos. É essa longa cadeia de dar, receber e retribuir que forma uma comunidade, uma sociedade, ou um conjunto de sociedades que intercambiam. Reside aí o princípio fundador da vida comum.

Enquanto a relação monetária, o pagamento do preço devido pelos bens e serviços trocados encerra a relação, propiciando a satisfação do consumidor que adquire o produto e se retira da cena para consumi-lo, as Ciências Sociais vão olhar para além, de maneira a perscrutar justamente o que alimenta as relações, os vínculos humanos, intra e extra mercado. Então, compreendem que a própria produção e circulação mercantil implicam dimensões extra utilitárias; há simbolismo e busca de sentidos múltiplos também em uma transação econômica. Há motivações ligadas à interação, à participação e ao reconhecimento social, ao entregar mais do que se recebe. É óbvio que o mercado moderno, asséptico, contábil, regulado pelas instituições econômicas, cumpre funções capitais, de cunho instrumental e segundo a lógica da eficácia. Mas ele é, na perspectiva do liberalismo puro, o que Karl Polanyi chamara de "moinho satânico", pois no decorrer do século XIX, reduzira a natureza e os homens a mercadorias, com todas as consequências adversas. E invertera as interações humanas básicas, conforme analisara Marx, no processo que denominou fetichismo da mercadoria. Marcel Mauss, assim como Polanyi, analisaram os mercados como parte das relações sociais, inseridos na teia maior da vida social. Daí esses autores serem adeptos das políticas sociais, do Estado de Bem Estar Social, das proteções sociais, na medida em que a vida social não é feita da circulação de coisas e práticas segundo a lógica do cálculo, mas sim de pessoas em suas relações sociais, necessariamente culturais e simbólicas; envolvem tanto interesse de ganho, quanto desinteresse.

Na perspectiva da dádiva, os aspectos da obrigação e do interesse que motivam as relações e as trocas, conquanto estejam presentes, não aparecem em primeiro plano. Ao contrário, tudo é feito de forma a manifestar o valor do outro, sobretudo a importância do laço social, inserindo seus agentes na rede de sua coletividade. Dádivas e reciprocidades ocorrem entre sujeitos, que agem de maneira deliberada e se lançam nas relações concretas, nas tríades dar, receber e retribuir. 

Era essa uma maneira muito original de apreciar a natureza das relações sociais. Há importantes implicações epistemológicas nessa forma de olhar a realidade. Na Sociologia Econômica contemporânea, diferentes autores classificam a perspectiva de Mauss como estando a meio termo entre o individualismo  e o holismo metodológicos. Ambos partem de postulados exteriores ao campo das interações, ao passo que a dádiva traz a análise para o plano das relações sociais, dos atores que se lançam na aventura de tecer e manter vínculos sociais. Apenas os vínculos herdados, obrigatórios, ou a cultura compartilhada não asseguram a reprodução das sociedades e de seus agentes. 

P. S.: Essas reflexões me vêm a propósito do meu aniversário ontem, uma ocasião na qual a gente pode se colocar, aparentemente, na condição de simples destinatário dos presentes, das dádivas e manifestações de apreço, puro recebedor sem obrigação de retribuir. Uma posição de privilégio que a gente acha merecida, uma "superioridade" sobre os outros sentida como justa nesse dia especial. Mas é uma ilusão consentida. Dura vinte e quatro horas. É gostosa e passageira. A gente depende mesmo da nossa teia de relações e das muitas doações e concessões que fazem a vida cotidiana. Sobretudo, dos vínculos que estão muito além dos nossos contatos, espalhados em diferentes espaços e tempos. Mas aí, frequentemente, a reciprocidade tende a ficar embaçada, perdendo-se de vista os nexos entre nós e os tantos outros distantes, o que lhes ocorre e o que lhes falta.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

O gari e a cracolândia

No atual processo de desocupação do lugar chamado cracolândia em São Paulo, chamou-me a atenção no noticiário de três dias atrás, a resposta de um gari entrevistado quando efetuava a limpeza de um aposento que servira de abrigo para consumidores de drogas que moram, ou passam muito tempo ali. Um volume indizível de detritos, absoluta falta de higiene. Naquele quadro, o repórter perguntou ao rapaz, que portava uma máscara de proteção da boca e do nariz, o que achava de espaço tão inóspito servir de moradia. Ele virou-se para o outro lado e, por um instante, deu a impressão de que não iria responder. Após uma breve reflexão a resposta veio firme:
- É o sistema. A culpa disso aqui é do sistema. Se tivesse educação para os jovens, um lugar desses não existia.
Uma resposta inesperada, porque fez de imediato uma crítica política ao invés de se deter no lugar, alvo da questão e da tarefa que lhe ocupava no momento. Resposta genérica por certo, mas certeira. Aquele lixo ali, material e humano, tem uma conexão com os arranjos sociais mais amplos da cidade, do país. As políticas sociais e a educação tecem alguns dos fios dessa rede que inclui a cracolândia.