quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A escola, a igualdade formal e as desigualdades substantivas

Pierre Bourdieu no artigo A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura*

Escritas em meados da década de 1960, essas linhas do sociólogo francês Pierre Bourdieu - que tanto contribuiu para uma crítica sociológica do sistema ecucacional moderno - fustigam a instituição escolar em seu papel de reduzir desigualdades sociais. Ele questiona a função esperada da educação de ser um canal efetivo de ascensão social às crianças, independentemente de seu meio social e de sua posição de classe. 

A releitura desse texto, embora não traga mais o sabor de novidade e de ruptura que teve em seus leitores na época, ainda é capaz de surpreender. Essa análise continua a chamar atenção aos muitos mecanismos sociais, sobretudo invisíveis, que operam para produzir e reproduzir a distância que há entre democracia formal e democracia substantiva.

Nada melhor para abordar essa problemática do que examinar o papel da escola. A instituição inscrita no coração da democracia moderna acaba por engendrar o seu contrário; nas palavras do próprio Bourdieu, ela acaba por reforçar o privilégio cultural. Mas, no início do século XIX, a França republicana não se vingara do seu passado feudal justamente ao deslocar para um plano secundário as heranças e ao pretender formar cidadãos? A educação pública e gratuita não visa justamente realçar o valor das capacidades adquiridas, independente de cor, sexo ou etnia? 


Essas reflexões do autor merecem ser revisitadas no momento brasileiro atual, de mudança de governo, quando compreensivelmente se reacendem esperanças de acertar o passo na construção de um país menos injusto. Sobretudo, menos concentrador de oportunidades. Volta-se a celebrar as virtudes da educação como instrumento de mudança, geradora de efeitos a longo prazo, que ultrapassam os ganhos imediatos que costumam nortear decisões políticas feitas de olho no calendário eleitoral. Não é a toa que, com relativa frequência, fala-se do êxito econômico de países que "levaram a educação a sério", como a Coréia do Sul.

É oportuno lembrar que a profundidade da análise de Bourdieu se deve em parte ao fato de que ela foi feita precisamente na França. Nesse país, fruto dos ideais da Revolução de 1789 e das lutas de republicanos e socialistas, a educação tornou-se muito democratizada. A escola pública, uma realidade incomparavelmente maior na França e na Europa, do que no Brasil. As escolas públicas brasileiras de ensino fundamental e médio são precárias, a despeito de inegáveis avanços, das muitas iniciativas de programas que vão contra a maré da precariedade. Mas, sabe-se que uma comparação simples entre a infra estrutura de escolas públicas e privadas já apontaria para a função "conservadora" da escola, nas palavras do autor, a função de conservar privilégios e reproduzir barreiras. Quando se agregam a esses fatores as características dos espaços onde as escolas se situam, como por exemplo a qualidade de vida de suas vizinhanças, não é preciso ir muito fundo na busca dos mecanismos pelos quais a escola contribui para manter o status quo.


Mas, justamente, ao tratar de um contexto social e histórico menos marcado por esses fatores tão explícitos, Pierre Bourdieu registrou seus aspectos mais sutis, mais sofisticados e, portanto, mais insidiosos, poque ao mesmo tempo legitimam as desigualdades. Quando ele analisou os dados sobre êxito escolar e origem social dos alunos e observou a forte correlação entre ambos, ele destacou as várias implicações dessa correlação. Dentre estas, o que ele chamou de violência simbólica: a aceitação pelos dominados, de sua posição social inferior.  Os membros de classes e frações de classe desfavorecidas, que proporcionalmente concentram
fracassados da escola em maior número, naturalizam posições que nada têm de natural. São, sim, arbitrárias, porque produtos de história social e política. 

Ele abriu seu texto falando que somente uma "inércia cultural" permitia que ainda se pensasse o sistema escolar como fator de mobilidade social. Ao contrário, era "um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural".
Do ponto de vista prático, essa leitura indica que não se trata só de democratizar o acesso à escola. É preciso levar em conta os atributos extra-escola que os educandos trazem - os "privilégios culturais" - e que, portanto, também aqui não basta tratar igualmente os desiguais.

A ação do privilégio escolar só é percebida, na maior parte das vezes, sob suas formas mais grosseiras, isto é, como recomendações ou relações, ajuda no trabalho escolar ou ensino suplementar, informação sobre o sistema de ensino e as perspectivas profissionais. Na realidade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir as atitudes face ao capital cultural e à instituição escolar. (p. 41/2)

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A escola e a produção do habitus dominado


Pierre Bourdieu elaborou uma crítica muito peculiar da sociedade autoproclamada democrática. Focou as dimensões mais imateriais das desigualdades que separam os agentes nos diferentes campos em que atuam. Notadamente, os aspectos simbólicos. Recusando a pensar como entidades separadas os indivíduos e a sociedade, o individual e o coletivo, procurou compreender ambos como dimensões de uma mesma realidade. Assim, embora a realidade objetiva, exterior e coercitiva - a ordem social com suas instituições, distribuição de capitais e hierarquias - se imponha aos agentes individuais, estes, por sua vez, contribuem ativamente na produção e na reprodução dessa mesma ordem social. Essa colaboração  que dominantes e dominados dão à construção da sua realidade não se dá sempre de modo consciente. Aliás, as colaborações mais eficazes à manutenção do status quo são as que se dão de modo inconsciente, quase automático, no sentido de práticas e padrões culturais interiorizados, associados a noções de correção e de dever ser.
Essa relação entre indivíduos e sociedade, ele procurou apreender com o conceito de habitus. E concluiu, nos seus estudos sobre a escola, que esta instituição é muito importante na formação dos habitus das diferentes classes sociais.
Os habitus correspondem aos esquemas de percepção da realidade que são incorporados nas posturas corporais, nos gestos, nos estilos, gostos, enfim, nas disposições para perceber e agir de determinadas maneiras, relativamente adaptadas aos requisitos da ordem vigente.

O conceito de habitus permite articular o individual e o social, as estruturas internas da subjetividade e as estruturas sociais externas e compreender que tanto estas quanto aquelas não se excluem. Ao contrário, são dois estados da mesma realidade, da mesma história coletiva que se deposita e se inscreve indissociavelmente nos corpos e nas coisas. (...) Sistema de disposições para agir, perceber, sentir e pensar de uma dada maneira, interiorizadas e incorporadas pelos indivíduos no curso de sua história, o habitus se manifesta fundamentalmente pelo senso prático, quer dizer, aptidão a se movimentar, a agir e a se orientar segundo a posição ocupada no espaço social, segundo a lógica do campo e da situação e, isto, sem recurso à reflexão consciente, graças às disposições adquiridas que funcionam como automatismos. (Trecho selecionado por Accardo e Corcuff. La Sociologie de Bourdieu. Bordeaux, Le Mascaret, p. 68)

Por exemplo, os habitus ligados às relações de gênero. A dominação masculina alimenta-se não só dos elementos concretos que dificultam a mobilidade  e a autonomia da mulher, mas também da interiorização por parte das mulheres, de valores masculinos de organização da sociedade e de sentimentos de auto-incapacidade para assumir funções de comando.

Bourdieu observou, de maneira penetrante, como os habitus levam as pessoas a ajustarem suas expectativas às suas possibilidades objetivas, pensadas de acordo com as experiências individuais e coletivas não só da própria pessoa, mas de seus grupos de referência, famílias extensas, vizinhos, membros da comunidade etc. E, assim, elas "escolhem" destinos socialmente determinados.
Citando pesquisas feitas na França sobre atitudes de famílias de diferentes estratos socioprofissionais quanto à educação dos filhos e aos investimentos que faziam nessa direção, o autor notou essa tendência de ajustamento de expectativas ao que era visto como possível. Isso era patente no tipo de escola escolhido, nas decisões de como e até quando bancar os estudos dos filhos de maneira "realista", tendo em vista não só os meios, disponíveis mas também as probabilidades de êxito na carreira.  A atitude com relação ao futuro é uma dimensão fundamental do ethos de classe, argumentou ele. E sintetizou em frases fortes:

Se os membros das famílias das classes populares e médias tomam a realidade por seus desejos, é que, nesse terreno como em outros, as aspirações e as exigências são definidas, em sua forma e conteúdo, pelas condições objetivas, que excluem a possibilidade de desejar o impossível. Dizer, a propósito dos estudos clássicos em um liceu, por exemplo, 'isso não é para nós', é dizer mais do que 'não temos meios para isso'. (p. 47)


Renunciar à esperança: o habitus bem sucedido

Tudo concorre para proclamar aqueles que, como se diz, ‘não têm futuro’, a terem esperanças ‘razoáveis’.... ou seja, muito frequentemente, a renunciarem à esperança. (P. 50)

A "escola conservadora"

Partindo das estatísticas que demonstram as chances muito diferentes de crianças alcançarem o topo da escolaridade segundo sua cor, etnia e classe social, Bourdieu observou bem a influência do contexto de relações sociais das crianças. A notar a importância que ele deu ao capital cultural da família. Este capital se exprime na atitude a respeito da escola que, por sua vez, depende das esperanças de êxito escolar. 
A influência do capital cultural da família vai se manifestar desde as primeiras fases da vida escolar, distinguindo as capacidades que os estudantes terão de aproveitar os recursos da educação. 

... é todo um capital de informações sobre o percurso, sobre a significação das grandes escolhas (...), sobre as carreiras futuras e sobre as orientações que normalmente conduzem a elas, sobre o funcionamento do sistema universitário, sobre a significação dos resultados, as sanções e as recompensas, que as crianças das classes cultas investem em suas condutas escolares. (p. 45)

Então, trata-se muito mais do que de apoio direto dos parentes, da contratação de professores particulares e de atividades de reforço aos estudos. Acesso a informações variadas, viagens, museus e exposições de arte, chances de ser exposto a diversas culturas são decisivas na formação. Além disso, há também a ambiência social que permite não apenas consumir formalmente esses bens culturais, mas de fato apropriar-se deles. Logo, são experiências decisivas na formação de habitus de classes sociais privilegiadas. A falta de acesso a tais recursos não é contornada pela escola. Daí que a diferença dos saberes dos alunos de diferentes categorias sociais costuma ser mais marcada no que diz respeito aos conhecimentos extra-curriculares: 

... familiaridade com obras de arte, a qual só pode advir da frequência regular ao teatro, ao museu ou a concertos. (...) Em todos os domínios da cultura, teatro, música, pintura, jazz, cinema, os conhecimentos dos estudantes são tão mais ricos e extensos quanto mais elevada é sua origem social. (p. 45)

Elas herdam também saberes (e um "savoir-faire"), gostos e um "bom-gosto", cuja rentabilidade escolar é tanto maior quanto mais frequentemente esses imponderáveis da atitude são atribuídos ao dom. (p.45)

Por nao se olhar seriamente para essas fontes de desigualdades entre os alunos, as pretensões transformadoras da escola não podem se realizar. E, assim, a dura crítica de Bourdieu a uma sociedade que apenas garante o direito formal à educação, mesmo que universal:

Se considerarmos seriamente as desigualdades socialmente condicionadas diante da escola e da cultura, somos obrigados a concluir que a equidade formal à qual obedece todo o sistema escolar é injusta de fato, e que, em toda sociedade onde se proclamam ideais democráticos, ela protege melhor os privilégios do que a transmissão aberta aos privilégios. (p. 53)

... tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às desigualdades iniciais diante da cultura.

Há, conclui o autor, uma indiferença no que tange às desigualdades reais diante do ensino e da cultura transmitida. A tradição pedagógica só se dirige, por trás das idéias inquestionáveis de igualdade e de universalidade, aos educandos que estão no caso particular de deter uma herança cultural, de acordo com as exigências culturais da escola.

Ao atribuir aos indivíduos esperanças de vida escolar estritamente dimensionadas por sua posição na hierarquia social, e operando uma seleção que - sob as aparências da equidade formal - sanciona e consagra as desigualdades reais, a escola contribui para perpetuar as desigualdades, ao mesmo tempo em que as legitima. (p. 58) 

Em suma, a educação contribui para mistificar as desigualdades, pois agrega valor simbólico, na forma de prestígio e reconhecimento, aos portadores de capital cultural e econômico. O êxito escolar transforma aptidões condicionadas socialmente, em diferenças de "dons" ou de "mérito". É o que fica claro no trecho a seguir:

Conferindo uma sanção que se pretende neutra... a aptidões socialmente condicionadas que trata como desigualdades de 'dons' ou de 'mérito', ela transforma as desigualdades de fato em desigualdades de direito, as diferenças econômicas e sociais em 'distinção de qualidade', e legitima a transmissão da herança cultural. (...) contribui para encerrar os membros das classes desfavorecidas no destino que a sociedade lhes assinala, levando-os a pereceberem como inaptidões naturais o que não é senão efeito de uma condição inferior e persuadindo-os de que eles devem o seu destino social (cada vez mais estreitamente ligado ao seu destino escolar, à medida que a sociedade se racionaliza) - à sua natureza individual e à sua falta de dons. (...) Conferindo às desigualdades culturais uma sanção formalmente conforme aos ideais democráticos, ele fornece a melhor justificativa para essas desigualdades. (p. 59)

Ele era cético quanto aos impactos de técnicas de difusão cultural direta, a exemplo da criação de Centros Culturais em áreas populares, ou empreendimentos ditos de educação popular, na medida em que carecessem da compreensão sociológica da função conservadora da escola.

Não há atalhos no caminho que leva às obras da cultura e os encontros artificialmente arranjados e diretamente provocados não têm futuro. (62)

Ele acreditava que esses organismos só teriam eficácia para difundir democraticamente a cultura mais valorizada na sociedade, se de fato a escola fosse obrigada a desenvolver em todos os membros da sociedade, sem distinção, a aptidão para as práticas culturais que a sociedade considera como as mais nobres.

Em conclusão, a escola vista como um todo, nos seus processos pedagógicos, nas seleções, nos exames, nos resultados, na evasão, na cultura que afirma ... contribui para metamorfosear ideologicamente os destinos em escolhas, convencendo os indivíduos de que eles escolheram um destino que já estava traçado a priori.

Indicador do grau de realização dos ideais da democracia em uma sociedade

  • medir as chances de acesso aos instrumentos institucionais de "ascensão social" e de "salvação cultural" para indivíduos das diferentes classes sociais

Vemos nestes dias  as cenas das crianças em favelas "resgatadas do tráfico" no Rio deJaneiro, correndo de tiroteios, ou em lugares distantes andando horas para chegar a uma escola de qualidade ruim. As chances de acesso, conforme o indicador proposto, caem em queda livre.

As políticas de enfrentamento desses problemas por meio de quotas sociais e raciais,  bolsas de estudo e incentivos culturais diversos têm pela frente enormes desafios. Diante das carências materiais tão profundas e da necessidade mais imediata de universalizar o acesso à educação, a leitura convida a não esquecer as barreiras culturais e simbólicas. Bourdieu mostrou, como ninguém, como essas barreiras operam para garantir às classes mais favorecidas - etnicamente, culturalmente, economicamente - o poder de "monopolizar a utilização plena da instituição escolar e concretizar suas promessas". Duplo desafio às políticas educacionais no Brasil.

Na perspectiva desse autor, é necessário considerar de maneira crítica o capital cultural transmitido e valorizado pela escola. E, ao mesmo tempo, desenvolver a sensibilidade ao tipo de capital cultural das famílias das crianças, seus modos de aquisição e transmissão e suas implicações no êxito e no fracasso escolar.


*BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Organização: Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. Petrópolis, Vozes, 1998.


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