segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

Trabalho e acumulação

Para o bem e para o mal, o trabalho é um meio de acesso à cidadania, a ponto de muitos julgarem mal políticas sociais destinadas a pessoas, ou a categorias de pessoas que não trabalham. Nele ancoramos boa parte de nossa identidade pessoal, social, auto-estima... E como dependemos do nosso "poder de compra", é uma barra pesada viver o desemprego. Por outro lado, a dedicação ao trabalho é uma justificativa fortíssima para o direito de acumular riquezas, mesmo em detrimento dos outros. 
Para repensar nosso mundo do trabalho e suas lógicas, a leitura litúrgica de hoje, do "Sermão da Montanha" (Mt 6, 25-34) é um convite. Me arvoro aqui a refletir sobre isso, sem pretender ser especialista em questões de fé, pelo contrário, muito menos a praticante fiel dessa Palavra. É uma reflexão apenas, de uma leiga.
Na Bíblia que tenho o trecho é intitulado "Aprender com as aves e os lírios" (Ed. Paulus, 2014, p. 1193). Jesus chama a não se preocupar com o comer, o beber ou o vestir, pois "a vida não vale mais que comida, e o corpo mais do que a roupa?". O Mestre mais uma vez usa a natureza para ilustrar sua mensagem. As aves e os lírios do campo, que não trabalham e, mesmo assim, mais belos do que qualquer realeza. Ele então nos incita a não centrar as preocupações no trabalho e na riqueza, mas a buscar o Reino de Deus e sua justiça, de onde então as coisas estariam garantidas a todos.
Se parece óbvio que somos mais do que as coisas de que nos servimos, na prática vivemos o contrário. Por que não conseguimos a confiança no Pai e não aproveitamos o mundo, seus recursos, a natureza que, associada à inteligência e criatividade humanas, é pródiga? Quando Jesus nos pergunta o valor da comida e das roupas, ele está chamando a atenção para nossa sacralidade - nossa vida não acaba aqui - e, portanto, para os valores de vida que orientam nossos trabalhos, em suma, a base material de nosso viver.  
Se trabalhamos como dom de vida, que não nos pertence, salvo para cuidar dela com a confiança de fazermos parte de um projeto maior, tudo muda. Mas como alcançar isso, se preciso saber se o que estou produzindo aqui e agora consigo guardar, para mim e para os do meu círculo? E, se eu não vigiar e juntar cada vez mais, não vou me apropriar e usufruir, e deixar para os meus herdeiros... Isso se dá no plano individual e, sobretudo, coletivo. Fronteiras, exclusivismos, tudo vem dessa mentalidade que não nos deixa viver como Ele convida: "a cada dia suas próprias preocupações!"
Somos mais que materialidade, somos seres espirituais, temos sonhos e símbolos, valores estéticos e morais, mas reduzimos nosso labor a apenas isso. A divisão do trabalho está ligada em tantas letras na Bíblia com a ideia da solidariedade entre os diferentes (ver as Cartas de Paulo). Mas, para muita gente, é só obrigação e pobreza. 
O trabalho é central. O Sermão da Montanha nos interpela a questionar o sentido forte que damos a ele. Como mudar o coração? O Mestre estava falando ao novo Homem e à nova Mulher que temos dentro de nós, iluminados que somos pelo Espírito Santo. Continuamos a trabalhar e, assim, a conquistar o mundo, aplicando o dom da inteligência, com liberdade. Ou seja, somos livres para construir o mundo, é nossa responsabilidade. Mas, desde há muito tempo, o fazemos com o velho pensamento e os velhos instrumentos! E isso nos encerra no ciclo do trabalho como sofrimento e da acumulação como horizonte.

domingo, 26 de fevereiro de 2017

Amar o inimigo?





As escrituras das religiões, além de testemunhos de fé, são fontes de conhecimento. Mais certo dizer sabedorias. Fudadas na espiritualidade, exprimem nossas maiores capacidades de ser e de fazer. Mesmo quando a caminhada histórica da religião agregou tons de dogmatismo, as fontes guardam lições e iluminam respostas à vida. Aventuro-me há pouco a conhecer a tradição cristã. Aventuro-me apenas. Cheia de dúvidas e vacilações.
Nosso ocidentalismo é cioso em separar saberes, ciência é ciência, fé é fé. É como também dizemos: economia é economia, mercado é mercado, sociedade é sociedade. Mas a separação absoluta nos empobrece como sociedade e, mesmo, como espécie. Afinal, que mundo é esse que temos a liberdade de construir? A abstração entre ideal e real, embora tão antiga, resulta nas tantas dores que acompanham os passos das civilizações e das pessoas: violências, vidas desperdiçadas, destinos sem destino... 
Nossas melhores realizações, nossas firmezas - é frequente a palavra "rocha" em textos de fé! - têm origens semelhantes: as esperanças dos povos e os sentidos que deram à vida e ao futuro. Elas se expressam nas obras humanas mais duradouras, monumentos, artes, conhecimentos e sabedorias que homens e mulheres de todos os tempos levaram consigo nas grandes viagens e migrações que moldaram nossos habitats. Hoje sabemos que até algumas florestas, paisagens aparentemente "naturais" resultaram de usos passados, de manejos ancestrais que contribuíam para a composição atual. Como disse o Papa Francisco, somos todos migrantes, passageiros. Loucura qualquer pretensão de exclusividade e de superioridade.
Nas leituras de hoje da liturgia católica, está a conhecida passagem de Mateus (5, 38-48), com a proposta: amar o inimigo! Era um corte radical com a lógica prevalecente até então e, principalmente, que impera até hoje. Imagine-se se deixar inspirar por isso na resolução de um conflito internacional! No mesmo texto consta ainda: "o Pai faz nascer o sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos". Como é possível? E os méritos? Que estranha lição essa de não fazer distinção, amar em primeiro lugar, pois Deus mesmo não distingue. Seria fácil, talvez, se o próprio Pai decidisse por nós! Beneficiasse só os bons. Mas não é assim. Nossa liberdade de escolha permanece até nesse plano. É um sinal de amor de Deus por nós, o de respeitar nossa liberdade? O amar, então, deve se manifestar em relações práticas, em atitudes, ou seja, em vida em conjunto, em projeto de sociedade que seja inclusiva, acolhedora... E o texto ainda conclui com outra frase famosa: "Sede perfeitos como o Pai celeste é perfeito!"
O espírito da mensagem não é para seres de outra galáxia. É para nós mesmos, construtores orgulhosos e soberbos de nações. O principal mandamento transmitido pelo Deus Encarnado, Jesus, foi o do amor. Não um amor abstrato, leis ou regras morais, mas sim qualidade das relações humanas. Se o primeiro mandamento de Deus era o do amor ao Pai, o segundo, colado ao primeiro, era o amor ao próximo, inclusive os inimigos! 
Essa lógica bebe da espiritualidade mais profunda e por certo está em diferentes religiões. Recusamos a priori de assumi-la, pois é demais! Amar o inimigo? Na mesma sequência de leituras, Paulo (1Cor 3,16-23) diz: a sabedoria deste mundo é insensatez diante de Deus. 
Ou seja, nessas mensagens não fica pedra sobre pedra, como disse Jesus. São convites fresquinhos, mais do que atuais. Em plena globalização, retomamos os muros, atualizamos conflitos armados, concentramos a renda e a dignidade, cortamos proteções. E nem lembramos que já bem antes, no AT, constavam as palavras de Deus a Moisés (também da leitura litúrgica deste domingo): "Não tenhas no coração ódio contra teu irmão (...). Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Lv 19, 1-2.17-18). É possível se inspirar nessas fontes? Em muitas passagens bíblicas constam reflexões diretamente indicadas a quem ocupa posições de poder. Convidam a abraçar a inspiração do Espírito Santo, que nos sopra essas verdades ao mesmo tempo estranhas, mas com tantas promessas de vida plena. Esse é um dos sentidos da Graça que temos. A vida e a liberdade de escolha não são frutos dessa Graça? Não atribuamos à vontade de Deus desgraças que são nossa responsabilidade! A palavra de ordem assim inspirada é a da solidariedade, da partilha e do acolhimento.

sábado, 11 de fevereiro de 2017

A mulher e o homem em Genesis

No inicio de Genesis há duas narrativas sobre a criação. Quando se referem ao homem e à mulher, a primeira - que detalha os sete dias - é bem resumida: "E Deus criou o ser humano à sua imagem (...) macho e fêmea os criou". (Gn 1, 27). A segunda narrativa traz o relato da mulher formada de um dos lados do homem, que exclamou: "Esta sim é osso dos meus ossos e carne da minha carne!". E conclui o texto: "... estavam nus e não se envergonhavam." (Gn 2, 22-25) 
Segundo a versão da Bíblia que estou lendo, são releituras da mitologia assírio-babilônica pelos povos hebreus em suas lutas contra as opressões q viviam.
Séculos de história consolidaram a leitura desses textos como justificativa da posição subalterna da mulher. No entanto, é também clara um tônica de reciprocidade e dignidade de ambos. A universalidade da condição de filhos e filhas de Deus em um mundo já marcado por impérios expansionistas, é destacada. E a mulher é recíproca do homem, enfim, "uma só carne". Ambos estavam para usufruir do Éden.
O mundo nessa leitura é visto em termos de equilibrio dinâmico e supõe-se que as caracteristicas fisiologicas de ambos os sexos não dariam lugar a desigualdades, pois eram parte da ordem natural. Gravidez, menstruação, força física... São partes de um mundo a ser usufruído em comunhão.
As instituiçoes politicas, históricas fariam outras narrativas e releituras, consagrando a desigualdade de gênero. Infelizmente as proprias igrejas legitimariam esse princípio em suas caminhadas, mas há importantes mudanças em curso.
Por isso, vale reler essas páginas de nossos simbolos de origem. Lá estão os sentidos mais fortes de nossa condição, para além das mesquinhas instituições que criamos. Luberdade, igualdade e dignidade.
Os que escreveram as narrativas do Genesis exprimiram o Verbo, a Palavra de Deus. Somos seres iguais em direitos e no dever de cuidar da vida.