quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Namoros novos, velhas atitudes

Em seu tempo, a pílula anticoncepcional foi saudada como grande fator de libertação das mulheres, conferindo-lhes um controle inédito sobre sua vida reprodutiva e sexualidade. Contudo, essa novidade extraordinária, cultural, científica, tecnológica, mantinha a dominação masculina nessa esfera da vida, a tradicional divisão de trabalho que  faz recair sobre as mulheres os maiores ônus do planejamento e  do controle da natalidade. 

No caso da pílula, são elas que assumem sós os efeitos colaterais possíveis da sua administração por longo tempo. No caso da esterilização, a laqueadura de trompas é uma intervenção cirúrgica mais complicada que a vasectomia masculina, mas a primeira predomina numericamente. Essa prática se ajusta à visão naturalizada de que a contracepção é, em primeiro lugar, assunto de mulher. Aliás, para muitas pessoas a própria concepção é assunto principalmente da mulher, como mostram as taxas de mães solteiras sem parceiro conhecido e os abandonos de bebês em que só se tem notícia da mãe, a grande culpada. 

A vigência de tais valores evidenciam-se em esferas públicas, na carência de creches e outros equipamentos coletivos na maioria das cidades brasileiras, estruturas que facilitem a conciliação entre trabalho e maternidade, especialmente para mulheres de baixa renda. É certo que a lei procura trazer equidade a essas relações, mas a força dos costumes ainda manda nas atitudes e na definição de políticas públicas e privadas. Ainda manda na tolerância que se tem com as dificuldades cotidianas que mulheres pobres enfrentam nos postos de saúde em busca de cuidados para os filhos pequenos. Ou na prática de compra de votos femininos com esterilização, cada vez mais rara, felizmente. 

As mulheres no Brasil e em outros países conquistaram autonomia que  gerações passadas desconheciam. Deixaram de ser sujeitas aos ritmos das suas muitas gestações, ou de suas irmãs cujos filhos tinham de ajudar a cuidar, ou ter de casar com o primeiro namorado para abafar a vergonha da família e o incerto futuro como mãe e pai ao mesmo tempo.

Uma médica que atende adolescentes opinava estes dias que se a pílula fosse boa, sem efeitos, certamente já se teria inventado uma pílula para homens. Admirava-se ao constatar como as namoradas de hoje se submetem aos papéis tradicionais em matéria de relações sexuais, arcando com os maiores custos da contracepção. Equidade, responsabilidade compartilhada, nada disso. No início da vida adulta, elas aceitam geralmente de bom grado o lugar convencional, enquanto perseguem seus projetos e sonhos, que podem ser os mesmos dos namorados, pois os direitos são iguais. Mas as preocupações e providências para evitar filhos precoces não são iguais. Elas transam sem grandes culpas e experimentam a liberdade sexual sem mexer no script.

Os métodos contraceptivos temporários considerados mais incertos e arriscados, o preservativo e a tabela, são também os que  induzem à partilha mais equilibrada da responsabilidade entre os parceiros. Planejamento, autocontrole e sensibilidade um para com o outro são mais necessários quando se lança mão deles. São atitudes, portanto, que questionam mais a fundo os padrões comportamentais que se acomodam à pretensa sujeição das relações sexuais aos ditames da biologia. Pelo menos nesse aspecto são  mais avançados do que a pílula e os outros métodos centrados na mulher. Cultivam novas atitudes.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Frases da semana

Vamos construir as pontes do diálogo em vez de checkpoints e muros de separação.

Mahmoud Abbas,  Presidente da Autoridade Palestina, na ONU em 23/9/2011

Devemos construir um futuro para nossos filhos e netos e para nós mesmos.

Benjamin Netanyahu, Primeiro Ministro de Israel, na ONU em 23/9/2011 

Por que essas frases causam tanta admiração, sobretudo a primeira, ao lembrar quanto se investe em obras anti-futuro?

 

domingo, 25 de setembro de 2011

INSS e SUS: patrimônios do Brasil dual

  
Com certa surpresa li o conselho de Mauro Halfeld, na coluna Nossa Vida,  Revista Época de 6 de junho de 2011. Ele se referia ao investimento na previdência pública em resposta a um leitor de 55 anos, que nunca contribuíra para a Previdência e lhe perguntava qual o melhor investimento para chegar aos 65 com um complemento que lhe desse razoável tranquilidade a partir de então. A resposta foi direta: "não há no mercado privado nenhum plano que seja mais completo do que o do INSS", cujos benefícios não se igualam a nenhum plano privado. Sugeriu que ele passasse a contribuir pelo teto máximo de R$3.689 e só depois contratasse previdência privada ou outro investimento.  

A surpresa é porque, frequentemente, a gente não lembra do caráter universalista da Previdência brasileira. E, principalmente, não lembra por causa da nossa dualidade social. Quem pode, obviamente não depende só da previdência pública. Isso não é um mal em si, contanto que a pessoa que dela dependa tenha assegurada a dignidade própria da cidadania. Os adicionais ficam para quem quer e pode buscar no mercado. Mas não é assim, como se sabe. A maioria dos beneficiários da aposentadoria, por exemplo, batalha, e muito, para fechar a conta do mês. A dualidade é igual na saúde, pois o SUS - que fez 21 anos dia 19 de setembro - está aberto aos 190 milhões de brasileiros, mas quem pode paga plano de saúde, mesmo com as limitações de cobertura e os primeiros lugares que os planos geralmente ocupam nos rankings de reclamações de consumidores. Ainda assim, é uma marca da distinção de classe no Brasil ter acesso a um plano de saúde privado. Não tê-lo, é se expor às filas, longas esperas, problemas no atendimento que vão desde o trato com a burocracia à rapidez dos contatos com os médicos. 

O ex-ministro da Saúde Adib Jatene recentemente apontou o paradoxo do Sistema Único de Saúde (SUS). Gratuito e para todos, mas tem menos dinheiro do que a iniciativa privada gasta para atender menos gente. Notável patrimônio que chega à idade adulta muito combatido, maltratado, maltratante, o SUS é uma inegável conquista social no Brasil. Precisa que a "boa política" se volte para essa área da solidariedade social. No fundo, os sistemas de saúde e previdência questionam a estrutura da sociedade como um todo, a concentração da renda e a justiça tributária, em seu papel genuíno de redistribuição de riqueza.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Dilma na ONU e a pena de morte

No mesmo dia em que um homem de 42 anos foi executado com injeção letal nos EUA, pelo assassinato de um policial vinte anos antes, a Presidenta Dilma falava na ONU:

"O autoritarismo, a xenofobia, a miséria, a pena capital, a discriminação, todos são algozes dos direitos humanos. Há violações em todos os países, sem exceção. Reconheçamos esta realidade e aceitemos, todos, as críticas. Devemos nos beneficiar delas e criticar, sem meias-palavras, os casos flagrantes de violação, onde quer que ocorram."

Ao que consta na imprensa, havia lacunas que não permitiam a plena convicção de que o condenado era o autor. Daí os abaixo-assinados e os muitos pedidos de clemência.

A abolição da pena de morte é um avanço em termos de processo civilizatório. Exprime um  aperfeiçoamento geral do Direito, no que ele guarda das melhores tradições culturais, legados de conquistas sociais e políticas de muitos povos. Ampliação do reconhecimento da dignidade humana, inviolabilidade do corpo, o valor do perdão, a crença na capacidade de recuperação e ressocialização de criminosos, dentre outros, são valores que se associaram para a progressiva "domesticação da vingança".

Apesar dos problemas na segurança pública e de notórios desrespeitos a direitos humanos, o país está à frente dos Estados Unidos e de muitos países em desenvolvimento nesse plano jurídico. A pena de morte aqui foi abolida já no fim do século XIX. Falta acabar com as execuções "informais" e as práticas de ajuste de contas direto que ocorrem no Brasil profundo. 

Tirar a vida de alguém é sempre uma violência. Tirar a vida de modo planejado, racional, asséptico, em presença de uma audiência, de alguém de quem se cuidou para manter a integridade física e mental e que, por isso mesmo, tem a contribuir com a sociedade, pagando sua pena em vida... Não há justificativa.


domingo, 18 de setembro de 2011

Pai de 50 filhos ganha manchete

Hoje figura na página da UOL reportagem sobre um "idoso de 90 anos, pai de 50 filhos, 33 dos quais com três mulheres da mesma família, que moram na mesma casa com o patriarca".  Inusitada toda a história: o número de filhos, a família polígama... Mas as duas mulheres dele que tiveram, uma, 17 filhos e a outra, 15, é que são as maiores heroínas dessa história. Para ler toda a história, clique aqui..

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Os jovens e o desenvolvimento

Na Carta Capital, edição de 14 de setembro, uma importante matéria - Laboratório de revoltas - expõe os índices de desemprego atual entre os jovens na Europa, que têm servido de combustível para as revoltas de jovens em grandes cidades, sobretudo em bairros de origem imigrante e onde os níveis de escolaridade são menores. São redutos atingidos pelo desemprego com especial vigor, mas evidentemente o fenômeno não se restringe a essas áreas. Não recai, portanto, em "populações problema", que teriam características peculiares que permitam localizar nelas o problema. Os índices apresentados falam por si. Na média do continente europeu, dados de julho de 2011, 20,5% dos jovens entre 16 e 24 anos estão desempregados. Acima da média estão países como França, Polônia, Portugal, Irlanda, Itália e, os piores, Grécia e Espanha, respectivamente com 38,5 e 45,7%. Na Alemanha, cujo quadro geral não é tão ruim - 9,1% - em uma região considerada rica do país, 54% dos jovens desempregados estão nessa situação há mais de um ano. 

Estudos indicam a dureza que é enfrentar longos períodos de desemprego no início da vida ativa. Documento da OCDE aponta que "jovens que encontram dificuldades na obtenção do primeiro emprego tendem a enfrentar problemas  para conseguir vaga pelo resto da vida profissional".

No contexto brasileiro, penso em duas políticas relacionadas aos esforços de gerar empregabilidade para os jovens: as bolsas de estudo para ingresso na universidade e as quotas de vagas para estudantes de meios desfavorecidos. Elas inscrevem-se na perspectiva de focalizar categorias que sentem mais dificuldades de inserção profissional, pelos obstáculos maiores à entrada no ensino superior e pelo fato de que seu capital social (redes de relações) tende a ser menos produtivo em "indicações" ao emprego ou oportunidade de trabalho. 

Além das estatísticas de desemprego e subemprego, exibimos no Brasil as dolorosíssimas estatísticas de jovens presidiários, envolvidos com tráfico, com depredação de patrimônio público, com violência. Sinais de exclusões ao longo de suas vidas, negação de direitos em muitas circunstâncias. As imagens nos jornais de jovens cheios de vida, inteligências e talentos dilapidados, de cócoras em pátios de prisões, são eloquente testemunho do desencontro entre desenvolvimento e juventude. Fala-se em inovação, o que é super pertinente. Mas, também, quanta capacidade de inovar está sendo perdida com essa máquina trituradora econômica e social que incide sobre tantos jovens, todos os dias. A despeito de projetos extraordinários implementados de norte a sul, por comunidades, grupos, governos, na área de educação, de inclusão social de várias formas, o respeito à cidadania social permanece direito central, isto é, chances pelo menos aproximadas de estudar, de brincar, de fazer esporte, de sonhar etc. etc.  

Muita inventividade e empenho são requeridos para enfrentar o problema da falta de oportunidades para jovens, à altura. Na Europa, as medidas de austeridade para combater a recessão atingem em cheio essa camada da população. A OIT recomenda políticas que focalizem a criação de empregos a jovens, dada sua sensibilidade ao ciclo econômico: "são os primeiros a perder postos quando a economia piora e os últimos a conseguir trabalho quando há crescimento". Programas de treinamento, aprendizagem e crédito para novos empreendedores são sugeridos. No Brasil, tem-se ainda que focalizar essa massa de jovens que já caíram nos descaminhos da vida. Devemos isso a eles.

É possível o desenvolvimento?

Para onde caminham as sociedades e as economias neste início de século? A idéia de progresso já perdeu o sentido faz tempo. Foi trocada pela crença na possibilidade do desenvovimento para todos. (Ver Declaração da ONU sobre Direito ao Desenvolvimento) Esse ideário também já enfraqueceu muito, mas ainda se fala, meio sem jeito, na partição do mundo entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, como que a relembrar de nossa capacidade ou interesse em forjar um destino comum para os habitantes do planeta, destino melhor, é claro. O sentido dessa distinção está meio enveoado, não se vê luz no fim do túnel que aponte um caminho plausível para todos, como manifestantes gritam em praças mundo afora. O esgotamento do ideário desenvolvimentista não é algo a lamentar por si só. Porque também não seria mais uma obrigação de caminho a ser seguido. O direito de escolha, o direito à diferença e, consequentemente, o direito de levar o tipo de vida que se considere digno de ser vivido (nas palavras de Amartya Sen), poderia ser um ingrediente central. Valores desse tipo fermentam as idéias de desenvolvimento sustentável, socioambientalismo, democracias participativas, multiculturalismo e autonomia. 

Mas, a inextricabilidade dos destinos nacionais continua firme, nas relações econômicas e políticas, na diplomacia e na falta que ela faz nas muitas guerras e conflitos bélicos. A "locomotiva" da China e suas repercussões nos ritmos de atividade econômica, a crise, que foi hoje pela manhã expressa na fala da presidente do FMI de que as economias emergentes não vão passar imunes... Continuamos no mesmo barco. Porém, como indica o belo artigo de Luiz Gonzaga Belluzo (A crise como ela é), retornamos ao velho ideário liberal da autoregulação pelo mercado, que Karl Polanyi analisou com maestria no livro A Grande Transformação.  As palavras de Beluzzo merecem destaque, pois ele mostra que a aceitação fácil das idéais subjacentes aos remédios liberais bloqueia a criatividade na busca de soluções novas.

"... o cidadão atropelado pelas erráticas e aparentemente inexplicáveis convulsões da economia não acredita no controle de seu próprio destino. As medidas de combate às crises, por exemplo, são capazes de destruir suas condições de vida, mas o consenso dominante trata de explicar que, se não fora assim, a situação pode piorar ainda mais. A formação desse consenso é, em si mesmo, um método eficaz de bloquear o imaginário social e promover a paralisia política, numa comprovação dolorosa de que as formas objetivadas da economia adquirem dinâmica própria e passam a constranger a liberdade de homens e mulheres". (Carta Capital, 14/99/2011)

O preço desse bloqueio (político e cognitivo) quem paga somos todos nós, que temos em comum o desejo de construir, no tempo que nos é dado viver, uma vida digna, boa, produtiva, com quem se ama, seja numa aldeia no Xingu, seja no deuxième arrondissement em Paris.

segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Há dez anos, Bush e a mesquita

Como muitos, neste 11 de setembro lembrei-me do que estava fazendo quando vi as cenas na TV de uma das torres gêmeas incendiando. Foi no intervalo de uma reunião no então Mestrado em Sociologia da UFPA. Pela TV ao fundo da sala, pensei tratar-se de um incêndio em um prédio, com aquelas duras imagens de pessoas desesperadas à janela. Só ao longo do dia fui sabendo do atentado de proporções extraordinárias.

Bush, que incrivelmente foi beneficiado em sua reeleição, dois dias depois do atentado visitou uma mesquita, respeitando os rituais muçulmanos. Uma atitude que cuidava, em meio à dor, de delimitar o campo da resposta civilizada, mantendo-se os princípios da tolerância e do respeito às diferenças. Mas, como sabemos, foi só um lapso de grandeza em meio a uma série de "políticas" de vingança que mataram muitas vezes mais do que os atentados. Troca de ódio por ódio, longe de produzir o que se disse nos discursos: o país ficou mais seguro com as medidas tomadas. Tolerância, diplomacia faltam hoje como ontem em relação àquela porção do Oriente de onde se originou uma grande parte de nossa herança cultural.
 

domingo, 4 de setembro de 2011

Fragmentos de Samuel Becket em Belém

Uma iniciativa muito especial está ocorrendo no Teatro Claudio Barradas, da UFPA. É a encenação, neste fim de semana, com entrada franca, de uma peça de Samuel Becket, dos seus Fragmentos de Teatro I e II. O título da peça é retirado da fala de um personagem: “Quantos infelizes ainda o seriam hoje se tivessem descoberto a tempo em que ponto estavam”.

Cheguei nessa peça meio por acaso, pois tinha ido assistir ao musical "Máquina, a história de uma paixão sem limites", na sala 5, no mesmo teatro. Como não havia indicações claras sobre a sala, acabei entrando no Quantos infelizes... Havia um pequeno cartaz no guichê de ingressos, mas pensei que pudesse estar indicando a peça de um outro dia. Enfim! Errei e fui ver a peça do autor que desenvolveu um olhar mordaz sobre a sociedade, sobre o vazio ou o absurdo de vários aspectos da existência. 

Claro que o começo não foi fácil. Em primeiro lugar, fiquei um tempo assistindo a uma peça pensando ser outra, até que me dei conta do engano. Então, confesso que senti falta de uma introdução para poder mergulhar no texto, uma voz em off que introduzisse o espectador no seu clima. Este clima estava bem reconstruído por sinal, uma penumbra enevoada que lembrava uma fria noite de uma cidade européia, talvez na Irlanda natal de Becket. Afora minha dificuldade e a sugestão que faço de uma pequena introdução para um espectador como eu, que não tem grande conhecimento da obra, acho que a peça é realizada com competência, com a profundidade e atmosfera que lhe cabem. Os atores deram muito bem conta do recado, entregaram-se com paixão em diversas cenas. 
 
No Fragmento I, um homem de costas está posicionado ao fundo. A silhueta se percebe pelo jogo de luzes e, no primeiro plano, dois funcionários quase idênticos, liam sobre suas mesas o que seriam passagens da vida daquele homem. Seria um repasse de suas memórias pela consciência. Podia ser a leitura que ele mesmo fazia sobre o seu viver e, como tal, sem uma lógica linear e, sim, com idas e vindas e as incoerências com que se tecem os fios de uma vida individual. O homem estava sobre uma janela, iria cometer suicídio e os dois funcionários estavam empenhados em repassar os dados de sua vida, alternando momentos de concentração na leitura a momentos em que eram tomados pelos sentimentos e emoções do personagem: seus medos, desejos irracionais, angústias, ternas inquietações e lembranças - por exemplo, ao mirar o céu, a curiosidade de qual das estrelas seria Jupter; dois passarinhos na gaiola em um momento da infância. A atmosfera é austera, o que importa são os pedaços daquela existência ordinária e plena de frustrações e de irrealizações. As dificuldades de relacionamento do personagem vêm à baila, assim como a solidão como característica marcante da biografia, em um mundo tão povoado.

No segundo Fragmento, dois "trapos" humanos de uma grande cidade conversam, um cego pedinte nas ruas, mau tocador de violino, e um homem de uma perna só, de aspecto também miserável, em uma cadeira de rodas. Na conversa que travam há poucas concordâncias e vários bate-bocas. Mas, ambos ressaltam aspectos críticos de uma ordem social vazia de sentido, lida por duas figuras à margem dessa ordem. Um toque de mãos e um desajeitado abraço revelam a sede de afeto de ambos, instante logo interrompido pela violência inerente às suas posições, pois a esperteza é como um mandamento naquele contexto. No entanto, aqui e ali rasgos de humanidade, como na preocupação do cego sobre a claridade do dia e sua consciência de que a infelicidade não era tal que justificasse acabar com a vida. Quando ele tateia procurando seus poucos pertences espalhados pelo chão, o outro lhe pergunta para que servem aquelas coisas, ao que ele responde: para porra nenhuma, mas eu gosto delas! Alguma semelhança com relações que temos com algumas de nossas coisas? Também aqui um texto complexo, duro, que por vezes fustiga o espectador. A esse propósito, vale a pena rever o filme Dodeskaden, de Akira Kurosawa, que  focaliza igualmente um personagem de rua em uma metrópole.

Detalhes da produção e da equipe estão no blog  O Senhor do Vazio. Também, na matéria Mergulho na obra de Samuel Becket há informações interessantes sobre a produção, seu diretor e o dedicado elenco. Em vários momentos, a representação é brilhante. Uma importante realização cultural em Belém.