sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Capital cultural e economia: a Sociologia Econômica de Pierre Bourdieu

Em suas análises sociológicas sobre o campo da economia, Pierre Bourdieu chamou a atenção que os agentes econômicos em concorrência - empresas, indivíduos, organizações, produtores, consumidores - são dotados de diferentes estoques de capitais. Mas, não se trata só de capitais no sentido econômico estrito, ou na forma de competências e formação especializada. Ele prestou atenção, particularmente, ao que chamou de capital cultural e social. 

Ele formulou esses conceitos para poder explicitar o que faz com que investimentos semelhantes de capital econômico obtenham retornos diferentes no mercado. Assim, ele olhou para as propriedades não diretamente econômicas dos agentes. De um lado, as redes de relações de que  participam (capital social), redes que encerram recursos potencialmente mobilizáveis pelos membros; e, de outro lado, as habilidades culturais. Além das qualificações adquiridas na escola, ele tratou  sobretudo daquelas habilidades culturais adquiridas no grupo familiar ao  longo da socialização; delas advêm os habitus primários essenciais para operar nesse campo, tais como determinadas disposições relativas ao uso do tempo, ou uma certa visão estratégica.

Bourdieu demarcou sua perspectiva teórica daquela própria à análise econômica convencional, que parte de uma concepção abstrata de atores  sociais em busca de realizar seus interesses na troca e que tomam decisões racionalmente conforme os sinais emitidos pelo mercado, os sinais da oferta e da demanda. A perspectiva de Bourdieu, como se sabe, concebe que os agentes já trazem para a esfera das trocas propriedades extra-econômicas, suas redes de relações e seu domínio das práticas culturais, o que os distingue de antemão e os coloca em diferentes posições no campo. Na formação dessas conexões sociais e dessas competências culturais, novamente Bourdieu prestou atenção às experiências vividas desde o lar parental, além da escola. Assim, pôde dizer: o mais oculto e determinante socialmente dos investimentos educativos é a transmissão doméstica do capital cultural. (p. 73)*

... o rendimento escolar da ação escolar depende do capital cultural previamente investido pela família e o rendimento econômico e social do certificado escolar depende do capital social - também herdado - que pode ser colocado a seu serviço (p. 74)


Sua sofisticada análise sociológica da economia procura discernir as complexas formas de existência dessas habilidades que resultam do capital cultural dos agentes. Compreende-se, sob um novo olhar, o que parece evidente: o quanto a economia depende da sociedade e expressa as lutas sociais em torno da apropriação privilegiada dos capitais. 


O capital cultural é um ativo durável, não percebido como  capital, mas sim como virtude da pessoa. Ele adiciona valor ao seu capital econômico, manifestando-se sob três formas básicas:

no estado incorporado, na forma de disposições duráveis do organismo; no estado objetivado, sob a forma de bens culturais - quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas ...; e no estado institucionalizado, como certificados, diplomas... (p. 74)

A aquisição do capital cultural nessa forma mais profunda, inscrita no corpo, requer muito tempo e empenho. E ele se transmuta em uma atributo  da pessoa culta e cultivada, aparece como seu dom e, portanto, como signo de seus méritos pessoais, validando assim sua posição distinta no campo em questão:


O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da "pessoa", um habitus. (...) Por consequência, ele apresenta um grau de dissimulação mais elevado do que o capital econômico e, por esse fato, está mais disposto a funcionar como capital simbólico, ou seja, desconhecido e reconhecido, exercendo um efeito de (des)conhecimento, por exemplo, no mercado matrimonial ou no mercado de bens culturais, onde o capital econômico não é plenamente reconhecido. (p. 75)

O autor refere-se aqui ao que chama de economia das grandes coleções de pintura, das grandes fundações culturais e à economia da assistência, da generosidade e dos donativos, que dependem de um forte capital cultural. Para ele, a visão economicista dessa economia simbólica não apreende a química social pela qual o capital econômico se transforma em capital simbólico, capital denegado ou, mais precisamente, não reconhecido. Bourdieu destacou que há uma lógica da distinção que garante benefícios materiais e simbólicos aos detentores de um capital cultural sólido. Esse lado simbólico da economia, que propicia ganhos extra a ativos econômicos, aproveita-se da raridade relativa dos bens simbólicos. Considere-se, nesse sentido, a grande vantagem competitiva daqueles que têm meios econômicos e culturais de prolongar os estudos dos filhos além do mínimo necessário à reprodução da força de trabalho menos valorizada em dado momento histórico

O capital cultural que os agentes econômicos em concorrência dispõem está muito ligado às condições sociais e econômicas das famílias de origem. De um lado, condições que a família teve de proceder à transmissão desse capital o mais cedo possível na vida da criança. E, de outro, a condição de poder prolongar o empreendimento de aquisição de capital cultural pela criança, o que depende do tempo livre que a família pode dedicar a isso, desde que liberada das necessidades diárias de prover o sustento (p. 76).

Há, também, o capital cultural objetivado em bens que podem ser transmitidos como o capital econômico, a exemplo de quadros, escritos, monumentos, obras de arte, máquinas, computadores... Pode haver desencontro entre quem possui os instrumentos  de apropriação desses bens (dinheiro, equipamentos) e quem possui os meios técnicos de se apropriar especificamente deles, isto é, o know-how tecnológico, científico, ou cultural que convém. 

http://museuvirtualsemanaartemoderna.arteblog.com.br/9608/PESCADOR-TARSILA-DO-AMARAL/ *
* Essa imagem do quadro "O Pescador", de Tarsila do Amaral, foi baixada do blog do artista plástico Nicéas Romeo Zanchett.
 

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Assim, as disposições ou inclinações para o jogo econômico dependem da posse do capital econômico e, também, cultural por parte do agente. São , ademais, agentes imersos em redes sociais. Em síntese, as lutas que se travam no campo econômico é feita por agentes dotados de qualidades cuja aquisição remete à trajetória individual e familiar, que são relativas à história das lutas de classe nessa sociedade.
Condenado a estratégias de curto prazo e de curto alcance, o consumidor sem recursos não pode colocar os vários vendedores em concorrência, a não ser mediante o dispêndio considerável de tempo e trabalho  (...) e nada tem a opor além da fuga ou do protesto impotente, às estratégias dos vendedores ... (p. 92)

*BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Organização: Maria Alice Nogueira e Afrânio Catani. Petrópolis, Vozes, 1998.

3 comentários:

  1. Vou acompanhar essa série de artigos. Pode ser que, assim, eu aprende um pouco do Bourdieu, kkkkk
    Que tal um pouco de Durkheim?
    Beijinhos e sempre avante!
    http://diariodeumamulherdespeitada.wordpress.com/2010/12/11/hermoso-gato-de-bandolero/

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  2. Diario de uma mulher .... gostei do seu comentário. Se quiser acrescentar alguma idéia, algum exemplo, a gente faz junto. Eu lembro das reflexões dos seus entrevistados nos supermercados. A noção de habitus podia ser aplicada a idéias que eles expressavam sobre suas relações no cotidiano do trabalho. Beijinhos.

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  3. Cris,

    Essa é uma forma de estarmos em dia com os clássicos que como cientistas sociais temos obrigação de conhecer. Bourdieu não era muito benquisto no meio da ciência política, mas ao elaborar minha tese de doutorado foi nele que me baseei para tratar do campo social em que se estrutura a trajetória pessoal dos/as candidatos/as submetidos ao processo de escolha intrapartidária para a competição eleitoral.
    Isso valeu uma crítica na ora da defesa, mas eu apresentei o argumento como o único que me dava chance de tratar sobre as profissões e ocupações desses atores sociais.

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