segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

ORGANIZAÇÕES INFLEXÍVEIS

À notícia impressionante da queda de um prédio em Belém, ontem seguiu-se uma grande tristeza, diante das pessoas que morreram, se feriram, desapareceram. E as que perderam bens e empregos.

Dá uma tristeza, também, o fato em si do desabamento, a ruína de uma obra dessas, antes de tudo um trabalho humano coletivo. De muitas mãos.

Particularmente, não gosto de prédios residenciais muito altos. Mas eles são, sempre, um prodígio de técnica, testemunham a capacidade humana de superar limites ambientais, para o bem e para o mal. A engenharia é um grande testemunho. Pode-se, com razão, questionar sobre a qualidade da participação dos muitos atores que intervêm nesse esforço coletivo, sobre a divisão entre poder de decisão e execução, entre saber e fazer. De qualquer modo, isso não invalida o caráter de produção coletiva que uma obra desse porte representa. As ferragens retorcidas e os pedaços de concreto amontoados também estão dolorosamente a dizer da falha do trabalho humano, da súbita inutilidade de tantas horas de empenho, de aplicação, de cálculos, de decisões, de gestos, transpostos para o corpo da obra.

Muitas perguntas se levantam, é claro, sobre os erros, as razões, as culpas, os responsáveis, as indenizações etc. Acho que vale lembrar, também, um tipo de pergunta que não é nova, que várias pessoas se fazem: por que tão altos os prédios em Belém? são realmente necessários? há premência de espaço? Imagino que perguntas semelhantes foram feitas quando da construção do primeiro grande edifício em Belém, o Manoel Pinto da Silva, inovador em todos os sentidos em sua época.

Mas hoje, com a quantidade de prédios cada vez mais altos que se constroem na cidade, que deixam para trás os vinte andares que costumavam ser o limite das construções até os anos de 1990, outros questionamentos aparecem: quais os princípios que orientam as decisões sobre a localização dos prédios altos no espaço da cidade? respeitam-se critérios ambientais e culturais? como se equilibram os interesses e as demandas de mercado com esses critérios? Em uma economia capitalista liberal, de respeito absoluto à propriedade privada, a decisão do que fazer em um terreno cabe ao seu proprietário, como bem se sabe. Mas, em se tratando de obras de grande envergadura, sabe-se também que os impactos - as "externalidades" na linguagem econômica - vão muito além dos limites da propriedade.

Assim, pode-se também perguntar que categorias de atores sociais decidem, ou pelo menos são ouvidos, quanto a critérios de localização das obras. Aparentemente, apenas os agentes econômicos, as empresas detentoras dos imóveis, além dos órgãos públicos e agências reguladoras. E, aparentemente, o poder destas últimas é menor. Fatores menos ponderáveis como a incidência da luz solar na rua e nas casas vizinhas, o direito à paisagem, a circulação de ar, a memória coletiva da rua ou do bairro não contam, ou contam muito pouco. São as regras de nosso jogo coletivo de produção da cidade, movida a mercado liberalizado, a oportunidades de ganho e de acesso à boa moradia a quem pode pagar. 

Muitas vozes há tempos vêm reclamando o respeito a um plano diretor na Região Metropolitana de Belém, o zoneamento e, ademais, que a cidade disponha de equipamentos compatíveis com o volume da ocupação e com o tamanho das construções e seus impactos, na forma de sistema de esgotos, redes de drenagem, recolhimento de lixo, trânsito, combate a incêndios, dentre outros.

A julgar pelos reclamos daqueles diretamente envolvidos e implicados, como os trabalhadores da construção por meio de seu sindicato, além dos moradores vizinhos, havia evidências de problemas na construção. Mas, por razões que os estudos vão indicar, não foram levados em conta.

Esses elementos configuram uma estrutura de comunicação fechada, pouco permeável, entre a obra e o sistema no qual se insere. E o que é uma obra de construção civil? Uma grande organização, mas que não funciona como "sistema de atores", conceito este formulado por sociólogos das organizações. Feed-backs não são incorporados no estilo de gestão vigente. É possível, também, que tendam a ser minimizados devido ao peso dos compromissos e encargos financeiros envolvidos no empreendimento. Uma vez em movimento, difícil fica parar, rever, retroceder.

Apesar da brutal diferença em volume e impacto social e ambiental, acho que a rigidez que acompanha o processo de expansão imobiliária nas áreas nobres de Belém é de mesma natureza da rigidez que acompanha o empreendimento hidrelétrico de Belo Monte, no Xingu. Em Belo Monte, as manifestações de insatisfação, as abordagens diferenciadas que apontam problemas, são levadas em conta apenas na medida em que há pressão social. Já sobre o uso e a apropriação dos espaços urbanos, a pressão é menor. É por isso que chamei esta postagem de organizações inflexíveis. Agem como se detentoras exclusivas, e legítimas, da razão técnica que dispensa outras considerações.

A pergunta espontânea que muitos fazem quanto ao por que da altura crescente dos prédios em Belém suscita uma resposta imediata: há demanda, há mercado a atender. Mas há também uma resposta que remete ao padrão de sociedade que acordamos construir e manter, que é muito desigual. Não há como construir edificações mais baixas ao longo de todo o espaço da cidade, pois não há poder de compra democraticamente distribuído pela população da cidade. Assim, o poder de compra se concentra verticalmente e se dilui horizontalmente. Não se misturam as pessoas que se encontram nos diferentes estratos sociais. Muito menos, se possível, suas moradias. Mas, aqui, já se está muito longe do prédio que ruiu.

Um prédio residencial é, também, uma fábrica de sonhos. Investir em uma casa é um sonho, realizá-la tem efeitos psicológicos que se estendem por toda a vida, sentimento de realização, de cumprimento de objetivos, segurança para os filhos se for o caso, para si... Esses sonhos desabaram junto para muita gente. Tomara que possam refazê-los logo. E que os que perderam entes queridos encontrem forças para superar a dor.

A cidade está triste.


segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

DEPOIS DA CHUVA

Ninguém por certo fica indiferente diante dos sofrimentos trazidos pela atual estação de chuvas, sobretudo na região serrana do Rio de Janeiro, nas primeiras semanas do ano, amplamente mostrados na TV. Na ocasião, além das costumeiras promessas de ação, muitas análises e propostas importantes tem sido feitas. Como de praxe, as justas críticas ao que se fez e deixou de fazer, constata-se aqui e ali desleixo, indícios de corrupção que atrasaram a adoção de técnicas que teriam minimizado as perdas, a exemplo de sistemas de alarme, ou  treinamentos da população. Vem a público que, por entraves burocráticos, determinado aparelho de monitoramento que havia sido comprado não funcionava na hora H. Ganham novo fôlego propostas de reforma urbana e  as lembranças sobre o quanto o inchaço das cidades deve à falta de reforma agrária. Pela enésima vez, fica patente o déficit habitacional. Pela enésima vez, também, vemos pessoas entrevistadas residindo à margem de rios ou em encostas dizendo que sabem dos riscos, convivem com a insegurança, mas não saem, ou não podem sair. 

A essas imagens do Sudeste, somam-se as cenas menos espetaculares de Belém, em mais um dia em que coincidem chuvas fortes com marés de sizígia - as marés de lanço no dizer dos pescadores - produzindo enchentes. Quantos sofás, poltronas, colchões, armários e geladeiras semi-submersos a indicar que não mais servirão. Ver pela TV as pessoas saindo de casa com água pela cintura em meio à poluição dá arrepio só de pensar em doenças, no mínimo. E a fala do prefeito entrevistado de que a conclusão da Macrodrenagem vai sanar os alagamentos soa pouco convincente diante de uma história rotineira.
 
Para além de discussões super pertinentes dos problemas e das soluções, deparei-me com duas análises que, escritas em tempos muito diferentes, tratam o tema com sensibilidade e originalidade. Para além da busca de culpados individuais ou institucionais, eles apontam para culpas coletivas. Sublinham como os impactos das chuvas espelham os paradoxos da nossa organização social, tão voltada para o crescimento e para a produção, que celebra o aumento do consumo e da renda e,
ao mesmo tempo, despreocupada com o que vai em suas suas periferias, no sentido espacial e social. O tipo de "fé no progresso" que nos move coletivamente cerra-nos o olhar para os processos da natureza e para saberes e práticas mais atentos à complexidade desses processos.

A primeira dessas análises a que me refiro está no texto que Carlos Drummond de Andrade escreveu para o Jornal Correio da Manhã de 14 de janeiro de 1966, chamado "Dias escuros", republicado há poucos dias no Viomundo (http://www.viomundo.com.br/). Impressiona a semelhança dos problemas de hoje e os de quase meio século e a sagacidade e a generosidade de seu olhar de poeta ao se debruçar sobre o assunto. Merece ser lido e pensado. Por isso, selecionei alguns trechos.

Eis que em um dia "sem luz", ele se referia à cidade do Rio "ensopada de chuva" e à sorte dos moradores mais vulneráveis: 
 
"Chego à janela e não vejo as figuras habituais dos primeiros trabalhadores. (...) Barracos que se desmancham como armações de baralho e, por baixo de seus restos, mortos, mortos, mortos. Sobreviventes mariscando na lama, à pesquisa de mortos e de pobres objetos amassados".
 
Crítico mordaz da sociedade, ele se refere à cidade "...tão rica de galas e bens supérfluos, e tão miserável em sua infra-estrutura de submoradia, de subalimentação e de condições primitivas de trabalho"


A tragédia denunciava "velhos erros sociais e omissões urbanísticas". Assim, ele reclamava sobre o papel do remorso que faltava diante dos que mais sofriam. Drummond se impressionava especialmente com a sorte dos trabalhadores, "a mão de obra que dorme nos morros sob a ameaça contínua da natureza" e que, portanto, mais fortemente sofria os impactos. E mencionou então as crianças que "nem tiveram tempo de crescer para cumprimento de um destino anônimo". 

Desde então, é fora de dúvida que os trabalhadores no Brasil conquistaram direitos significativos.  Ampliou-se a "armadura assistencial" cuja ausência ele lamentava. Ela vem com os aluguéis sociais, o acesso facilitado ao FGTS e ao crédito imobiliário, procuradores e defensores públicos mobilizados rapidamente para agilizar os trâmites relativos às mortes e perdas materiais, além de uma previdência social muito mais inclusiva. Mas é bem certo, também, que persistem estruturas sociais que conduzem crianças e jovens aos "destinos anônimos", não só nas encostas e beiras de rios, como também nas prisões em que sobressaem os jovens.
 
O texto revela uma outra semelhança entre hoje e ontem. Uma semelhança positiva se assim se pode dizer. É a solidariedade imediata das pessoas, sobre a qual ele disse ser uma "corrente de afeto solidário, participante, que procura abarcar todos os flagelados". Essa ajuda espontânea emociona sempre, mesmo se se cobra do Estado, com toda razão, a necessidade de treinar voluntários para atuar organizadamente em situações de calamidade, o que ocorre na Austrália, no Japão, no Canadá etc., como destacam os noticiários.

O outro texto é de Leonardo Boff. Em" O preço de não escutar a natureza" (www.adital.com.br), ele toca em uma "ferida mais funda", penso. Clique em "leia mais", abaixo, para prosseguir.


terça-feira, 18 de janeiro de 2011

PRECONCEITOS... E OS DIREITOS NA CORDA BAMBA

A primeira vez que ouvi sobre o "caso Dreyfus", foi no decorrer do meu curso de graduação em Ciências Sociais. Aprendi, então, que esse foi um evento marcante do contexto em que a Sociologia como ciência se consolidou na França, na virada do século XIX para o XX. Vivia-se um período que pode ser considerado como de consolidação da modernidade na Europa, expresso nos processos de industrialização e de urbanização crescentes, na  constituição do Estado laico e na emergência da primeira geração dos direitos sociais. A ciência da sociedade tanto resultava desses processos de mudança quanto deveria ser um apoio na conformação da nova ordem social, ao elucidar os problemas  decorrentes da divisão do trabalho, do individualismo, das lutas de classe, do novo espírito científico e do tradicionalismo etc.

No entanto, mais do que um elemento naquele contexto, um olhar mais próximo sobre o drama pessoal e humano de um capitão judeu condenado injustamente traz à tona questões atuais sobre a força dos preconceitos e sobre como, especialmente em contextos de crise social, preconceitos podem legitimar transgressões das leis em nome de "interesses maiores", que justificam passar por cima de indivíduos em favor da coletividade. Ainda mais, se os indivíduos em questão são membros de categorias sociais menos valorizadas, subalternas, que carecem de igual reconhecimento. Seus dramas podem, assim, ser menos sentidos pelos demais membros do corpo social, ideologicamente aliviados da culpa pelas injustiças eventualmente cometidas em nome de um "bem maior". 

Esta reflexão vem a propósito do livro recente de Louis Begley, O Caso Dreyfus - Ilha do Diabo, Guantánamo e o pesadelo da História. Ele nos aproxima dos muitos personagens daquele drama, e dos desafios que viveram. Portanto, para além da importância histórica do evento. Ademais, ao levantar paralelos com os processos dos prisioneiros na base americana de Guantánamo pós 11 de setembro, ele aponta para a permanência de atitudes que põem em risco as democracias e seus sistemas jurídicos.

Surpreendentemente, o tema é atual. Clique abaixo em "leia mais" para saber.


terça-feira, 11 de janeiro de 2011

EM BUSCA DO OURO

O impulso para ganhar dinheiro, a auri sacra fames sobre a qual se referiu Max Weber no seu livro sobre a ética protestante e o capitalismo, motivou e ainda motiva corridas por ouro e pedras preciosas em diversos lugares no planeta. Páginas expressivas da colonização européia no Novo Mundo, como ocorreu no Brasil e na Austrália, foram vividas por pessoas que se aventuravam em busca de um Eldorado. Essas duas experiências tiveram traços em comum, embora correspondessem a sistemas sociais muito diferentes. Em um caso, tratava-se de uma"colônia de exploração" e, no outro, de uma "colônia de povoamento", segundo a terminologia consagrada pela pesquisa histórica. As diferenças ressaltam no uso de escravos, trabalhadores livres ou remunerados como modalidade principal de trabalho, no grau de controle da produção pela metrópole e na aplicação dos ganhos obtidos então. Em comum, além de violência, racismo e exploração, é notável que a busca pelo ouro em ambos os contextos esteve na origem de movimentos de libertação do jugo colonial. Ela ajudou, portanto, a forjar sonhos locais de autonomia, aproximando de certo modo essas realidades distantes e "atrasadas", dos processos sociais em curso na Europa ocidental e nos EUA nos séculos XVIII e XIX.

No Brasil, a Inconfidência Mineira foi precedida de várias tentativas de fugir às taxações e controles, notadamente às "derramas" instituídas obrigatoriamente pelo governo para compensar os fracos recolhimentos de impostos sobre o ouro.

http://archive.amol.org.au/eureka/gallery2/001.htm
Na Austrália, no Estado de Victoria, a Rebelião de Eureka em 1854 (Eureka Stockade), foi um levante dos garimpeiros nas minas de Ballarat contra a imposição de licenças para garimpar, a serem pagas independentemente dos resultados em ouro, penalizando sobretudo os de menos sorte. Assim como se considera a Inconfidência um marco na independência no Brasil, na Austrália considera-se aquele movimento um marco no desenvolvimento da democracia e da identidade do país. Os garimpeiros revoltosos na Austrália formaram um movimento de reforma política chamado Ballarat Reform League, com bandeira própria inspirada no Cruzeiro do Sul. Tiveram entre seus líderes homens que haviam atuado no movimento cartista na Inglaterra e em outros movimentos libertários de trabalhadores na Europa nos anos de 1840. Resultaram da Rebelião de Eureka, a reforma das leis reguladoras da mineração e o direito de os garimpeiros votarem para o legislativo local. Neste ponto, portanto, uma radical diferença em relação à resposta estatal à Inconfidência cerca de sessenta anos antes em Minas Gerais.

Hoje, próximo à cidade de Melbourne, o turista pode  visitar uma localidade insteiramente reconstruída segundo o que seria a vila mineradora de Ballarat daquela época e, também, experimentar a apuração do ouro na batéia. O conjunto lembra uma povoação do faroeste americano retratada nos muitos filmes do gênero. Assiste-se, ainda, a uma impressionante representação em som e luz da Rebelião. Aliás, representações de acontecimentos ou de processos históricos desse tipo fazem falta no Brasil. Elas poderiam ser feitas junto a monumentos históricos; em Belém, por exemplo, nos muros do Forte do Castelo, nas ruínas do Engenho Murucutú, ou em partes das Igrejas setecentistas projetadas por Antonio Landi.
Uma visita a Ouro Preto, linda cidade pelo patrimônio arquitetônico super bem preservado, classificado patrimônio cultural da humanidade e, também, por suas paisagens montanhosas, hoje bastante ocupadas, propicia uma rara sensação de mergulhar na história colonial brasileira e na origem do Estado das Minas Gerais, no interior de um Brasil que no século XVIII adentrara para bem além da zona costeira. Os edifícios e as igrejas imponentes no alto de suas ladeiras, exprimem parte da riqueza gerada na época pela extração do ouro. Este ouro, bem se conhece, foi em sua maior parte (dados oficiais) para Portugal e, de lá, seguiu também para a Inglaterra, onde deu sua contribuição no financiamento da Revolução Industrial. Testemunho do tributo dos escravos à modernidade capitalista emergente!

A senzala guardada nos porões da Casa dos Contos e duas minas abertas à visitação - uma movida a trabalho manual de escravos até sua desativação e a outra com escravos apenas nas duas primeiras décadas e, depois, por mineiros assalariados e uso crescente de maquinário até a década de 1980 - lembram as bases da sociedade que se erigiu dessas fontes. Impressionantes e sombrios caminhos, agora muito limpos, a evocar vozes passadas, andares, carregares, suores, obrigações, vigilância e, não raro, pressas para escapar ao oxigênio perigosamente rarefeito nas condições de iluminação e ventilação vigentes, sobretudo nas estreitas galerias da mina operada manualmente. Sem imagens da época, pode-se apenas imaginar o que se passou nessas minas.

Os guias locais, bem informados e atenciosos, falam das muitas estratégias que foram utilizadas para se evadir do pagamento dos impostos à Coroa, a quinta parte do ouro extraído (donde a expressão "quinto dos infernos"). Repete-se, então, que "a corrupção no Brasil vem desde essa época". O comentário soa bizarro ao turista, certo e errado ao mesmo tempo, enganador mais do que esclarecedor. O que era certo na razão de Estado da época, na ordem jurídica correspondente, era injusto sob tantos outros pontos de vista, e isso em nada justifica moralmente a corrupção entre nós, na República do século XXI. A idéia denota perigosamente a naturalização desse comportamento, naturalização que ajuda a mantê-lo. Seria talvez preferível pensar que se trata de uma das heranças do sistema colonial, de um preço decorrente desse "começo" de nação tão conturbado e insidioso nas suas metamorfoses e evolução.

A visita ensina sobre a história do trabalho no Brasil. Assim, vê-se que dentre as peças técnicas expostas nos museus, a quantidade de instrumentos de repressão - algemas, coleiras, correntes, troncos, chicotes, palmatórias ... - parece suplantar a de instrumentos agrícolas, teares, boticões de dentista, urinóis e escarradeiras.  

Aprende-se, ademais, a fonte de expressões linguísticas correntes, ligadas ao trabalhar naquele contexto. Além do quinto dos infernos, o "fazer nas coxas" que associamos a algo apressado e, portanto, mal feito, teria como origem a moldagem das telhas pelo escravo sobre suas coxas, resultando em telhas de diferentes padrões. Há, também, as expressões que soam mais alegres, que remontam a antigas práticas de resistência. O "santo do pau oco" é bem conhecido.  Menos conhecida é a origem do "lavar a égua", isto é, sair-se bem em um evento, atividade ou jogo; ela vem da antiga prática de esconder parte do ouro em pó, no pelo de éguas que, depois, eram lavadas para se recuperar clandestinamente o ouro.

No plano da arte sacra, riquíssima na cidade, resssaltam as muitas igrejas setecentistas, cujo valor histórico, artístico e cultural é inquestionável. Elas são apontadas como representações das mais significativas do barroco colonial e do rococó. A beleza, como disse uma vez um comentarista, é sempre uma beleza triste. Ao olhar para aqueles incontáveis santos, oratórios, crucifixos, cetros, ostensórios, peças e adereços usados em procissões, indaga-se sobre o propósito para os homens e as mulheres da época, daquelas ações de devoção tão frequentes, tão ostensivas, de toda a vida aparentemente regulada pelas relações religiosas naquele contexto de extrativismo pleno de acasos e perigos, além da repressão. O mobiliário das residências das elites, aparece muito austero pelos padrões de hoje. 

As igrejas também traduzem um aspecto de enorme significação da vida social de então: as irmandades religiosas, que bancaram cada uma a construção de sua igreja, incluindo irmandades de escravos. Propiciavam, ainda, uma espécie de previdência mutualista. A Igreja de Santa Efigênia foi de uma irmandade de escravos. Dela se diz que foi construída graças ao lendário líder Chico Rei, de nome original Galanga, que teria sido um nobre africano que não se reduziu à escravidão. Trabalhou em uma mina que depois comprou e, então, comprou a libertação de muitos de sua tribo de origem. As ruínas do que teria sido sua residência jazem mal conservadas próximo a uma das minas, na rua Chico Rei. 

A construção da Igreja de Santa Efigênia foi supervisionada pelo pai do Mestre Aleijadinho, este último a figura maior na escultura religiosa no Brasil daquele período, filho de uma escrava. Ele contou com a atenção do pai para florescer no campo das artes. Nas muitas esculturas de sua autoria nas igrejas de Ouro Preto e na cidade de Congonhas, aparecem sinais de rebeldia e crítica ao sistema colonial: marca de enforcamento nas figuras de Jesus, ou botas de soldados portugueses nos soldados romanos representados nas cenas da Paixão de Cristo. Seu pai teve de negociar com os membros da irmandade da Igreja da Conceição, cuja construção ele mesmo dirigiu e ornou, para que o filho Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho), pudesse ser lá batizado. Ela, como as demais irmandades de brancos, não admitia negros nos seus cultos. Mas a ameaça de deixar inconcluso um trabalho realmente insubstituível, abriu uma brecha naquela regra da ordem estamental e o menino foi batizado aos seis anos de idade.

A riqueza material decorrente do ouro, ainda que expatriada em maior proporção, também se expressou no florescimento cultural entre os membros da elite, como indicam, por exemplo, as produções literárias de Tomás Antônio Gonzaga e seu drama amoroso com Maria Dorotéia - A Marília de Dirceu -  e da poetisa Bárbara Eliodora, esposa de um dos inconfidentes. Os participantes do movimento da Inconfidência eram em grande parte militares graduados e profissionais qualificados, além de artesãos. A produção artística refletiu de diferentes modos, não linerares, anseios de liberdade e autonomia, além de abrigar exercícios de  crítica social.

Lembrou-nos o guia, que a posição da estátua de Tiradentes no meio da praça principal, no local onde sua cabeça foi exposta, dá as costas a um prédio que foi a residência oficial do governador, ou seja, a um símbolo do poder colonial. 

Os monumentos daquela região aurífera estão a indicar as muitas dimensões sociais e humanas das chamadas corridas pelo ouro, que importa conhecer e refletir. 

Seria fantástico se as escolas brasileiras, inclusive as públicas, abrissem  em sua programação visitas a regiões históricas do país.