sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

A propósito do "menino que nesta noite aniversaria"

O título desta postagem inclui a expressão "o menino que faz aniversário", que ouvi há tempos do colega de pesquisas Jean Hébette, ao se referir ao Natal, durante uma das reuniões do nosso grupo de estudos. Hoje vem-me a mente um grande comentador e intérprete da vida de Jesus, o teólogo russo Aleksandr Mien, cujo livro Jesus, Mestre de Nazaré me foi sugerido por uma colega do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA. 

Tecendo suas reflexões em um contexto social e histórico distante, sua escrita tem uma grande qualidade, que é a de parecer travar um diálogo com o leitor,  propondo uma reflexão conjunta entre autor e leitor. E, assim, ele vai apresentando a figura de Jesus, sob ângulos por vezes surpreendentes, munido de farta documentação histórica, situando-o no seu tempo e, também, no que ele tem de universal e atemporal. Aproxima-se, portanto, da própria mensagem - muitas mensagens - do menino que faz aniversário em 25 de dezembro. 

Sem qualquer pretensão de dar uma lição religiosa, totalmente fora de minhas possibilidades ou competência, este texto reflete sobre alguns aspectos da obra do "mestre de Nazaré" que a tornam referência em muitas partes do planeta, referências culturais e ideais.  

Dentre as muitas passagens que valem a leitura da obra de Mien, há os  também muitos episódios em que Jesus exprimiu, por palavras e ações, sua concepção do ser humano universal, igualmente digno de reconhecimento independentemente de status, etnia, classe social ou gênero. Assim, por exemplo, no que tange à condição da mulher, ouve-se do autor que Jesus disse pela primeira vez a alguém tratar-se do Messias e "revelou a essência da religião do espírito" , não aos discípulos, mas a uma mulher, na Samaria; e, "ainda por cima, pecadora e herética...", nos padrões da época (p. 105). 

Mien situa a visão de Jesus sobre a igualdade radical  na condição de ser humano - nela incluída, portanto, as mulheres e os homens - no contexto da reflexão filosófica e religiosa da época, em que prevalecia o status subalterno da mulher.


Para um filósofo como Sócrates, a mulher era "um ser estúpido e enfadonho. No mundo pré-cristão, as mulheres quase sempre não passavam de servas mudas, cuja vida só conhecia o trabalho extenuante e as obrigações de casa. (...) Foi Cristo quem restituiu à mulher a dignidade humana que lhe fora tirada, o direito de ter exigências espirituais. A partir dele, o lugar da mulher não se limitou mais ao lar doméstico. Por isso, no grupo de seus seguidores mais íntimos vemos muitas mulheres.... (p. 105)

Do mesmo modo, relembramos a vivência de Jesus no meio das pessoas comuns e o seu objetivo maior de elevar os seres humanos ao plano divino desde "este mundo". Daí ter andado e convivido entre os "mais simples", de uma maneira muito diversa do que  igrejas instituídas assumiriam muitas vezes ao longo de suas histórias: poderes  materialmente distantes dos seus "povos".


O desdém pelas hierarquias sociais ficou patente nas manifestações de divindade de Jesus em momentos ordinários, entre pessoas comuns e não em situações solenes ou majestáticas, de evidente poder e autoridade. Foi assim na famosa transformação de água em vinho durante uma festa de casamento, episódio sobre o qual Mien assim analisa:

Foi assim que o poder de Jesus sobre a naureza se manifestou pela primeira vez, não com sinais temíveis, mas em uma mesa posta, no meio das canções alegres de uma festa de casamento. Usou pela primeira vez o seu poder sobrenatural quase por acaso, para que não se tornasse triste um dia festivo. Afinal, ele viera para dar aos homens a alegria, a plenitude, a vida 'em abundância'. (p. 78)

Há, ainda, a célebre cobrança do amor incondicional pelos outros, recíproco, a começar pelos inimigos, como resultado dessa sua concepção universal do ser humano digno de respeito e reconhecimento. Além do "oferecer a outra face" ao agressor, Jesus contribuiu também na história da construção do Direito como "domesticação da vingança". Sua concepção de irmão e próximo rompia com a noção corrente: irmão e próximo passava a ser qualquer um, sem relação com sua posição ou comunidade de origem. A compaixão, a solidariedade, as ações para com os outros eram os indicadores dessa condição de irmandade ou proximidade. Esses sentimentos e ações recíprocos deveriam nortear a normatização da vida coletiva,  as relações jurídicas, como se verifica na seguine passagem: 

Nos códigos pagãos a punição muitas vezes era mais pesada do que a própria infração. (...) "Olho por olho, dente por dente". Jesus distinguiu com nitidez o direito penal de uma justiça baseada em outros princípios. Para todo mundo, é natural odiar seus inimigos; mas os filhos de Deus devem vencer o mal com o bem, devem lutar em seus corações contra o sentimento de vingança. Não só. Devem desejar o bem daqueles que o ofendem. Esta é uma tarefa bastante ousada, um modo de manifestar uma força interior autêntica (...).


E as belas palavras de Jesus:

Se amais só aqueles que vos amam, que mérito tereis com isso? (p. 96)

Tem-se aqui muito mais do que a recomendação de princípios técnicos que tornem justa a justiça. Na fórmula mesma da lei devem inscrever-se princípios de reciprocidade humana, isto é, o sentimento claro dos laços que aproximam os membros dessa humanidade comum. Jesus fazia uma cobrança singular, pois uma tal tarefa, como diz o intérprete, deveria expressar uma grande força interior.

Na sua trajetória, Jesus fez inúmeros convites, endereçados democraticamente, sem distinções. Certamente em todas as culturas, um convite feito a alguém, a uma festa, a uma confraternização, a uma partilha, a um trabalho, a uma  ação coletiva, a uma ceia... é a expressão, por excelência, do reconhecimento da pessoa em seu valor, em sua dignidade. Sobretudo, em sua individualidade. É, assim, uma relação entre sujeitos.

Todos, por certo, já vivemos a tristeza de não sermos convidados. Bem a propósito, o colega Jean Hébette relatava dias atrás o depoimento de um pescador que entrevistara durante uma pesquisa de campo. Era um participante de um movimento social em defesa de lagos contra a pesca predatória no município de Porto de Moz, à margem do rio Xingu. O entrevistado manifestara seu orgulho de estar sendo convidado por muitos para participar de eventos, de reuniões dentro e fora de sua localidade e de seu município.

Os convites do aniversariante Jesus não foram dirigidos a um sujeito passivo, como se sabe bem. Aceitá-lo era dar um grande passo, laborioso, implicava compromissos que não eram leves, pois se tratava de construir o Reino de Deus. Na história humana  foram muitas as visões diferentes - e os embates e as guerras - quanto ao que significa este Reino, como construí-lo. Muitas interpretações conflitantes, que enfatizaram determinados ângulos ou interpretações, em detrimento de outros, ortodoxias em lugar de diálogos e de ecumenismo. Tudo bem conhecido.

Independentemente da crença específica que se tenha, ou não se tenha, é  notável que a data do Natal é símbolo de tanta coisa boa. Queiramos ou não,  entre os povos  seguidores do Cristianismo e, mesmo em outros, a rotina muda.  É certo que para uns mais do que para outros. A mensagem daquela biografia que hoje se relembra, é forte. É forte no que ela tem de universalismo, de apreço pela humanidade e, notadamente, ao combinar de modo tão peculiar o interesse pelo coletivo e, dentro deste coletivo, também pelo mais particular, o mais humilde - basta que lembremos as passagens sobre a alegria da volta do filho que partira, a ovelha desgarrada... Nesse sentido, a gente sente e, humildemente, pensa compreender a grandeza dessa construção e dessa herança. 

domingo, 19 de dezembro de 2010

Um lance distante da cidade fraturada

Pela varanda do quarto vi ontem, sábado de tarde, ao longe, andando em uma das estreitas ruas com casas que ainda persistem no bairro do Umarizal, em Belém (Pará), uma pessoa que pensei ser um menino a brincar, pois vinha descalço, andando a passos largos, quase correndo como se apressado na brincadeira, segurando o que parecia um objeto antes muito usado em brincadeiras na rua, uma lata amarrada a um fio que pode ser puxada como se fosse um carrinho. A cena tinha algo de estranho, pois não é mais comum ver crianças brincando na rua nessa região da cidade. Quanto mais  a gente se afasta da Doca, menos pessoas tendem a estar nas ruas; as que estão são transeuntes passando rumo a seus compromissos ou lares. De todo modo, era uma cena muito simpática. Por instantes dava para se deixar levar por uma sensação gostosa: crianças despreocupadas usando o espaço da rua para brincar.

Mais próximo, contudo, a "normalidade" do urbano se manifestou. Era um um jovem, um mendigo  que costuma andar pelas redondezas falando só, pedindo um trocado aos passantes, com quem vez por outra cruzo nas minhas raras andanças. Ao chegar ao fim da quadra, ele dobrou na outra rua continuando seu passo apressado e, segundo meu olhar convencional e distante, um passo sem rumo definido. Pouco depois, ele foi ultrapassado por um carro com janelas fechadas. Era a cena cotidiana que se recompunha.

Esta cidade grande não é só de estranhos. A estranheza da vida na metrópole foi um aspecto que tantos analistas da vida urbana moderna em sua ascensão destacaram, notadamente Georg Simmel no início do século XX na Alemanha que então se urbanizava rapidamente. Mas, Belém é mais uma cidade fraturada e temerosa. A sociabilidade dos habitantes é contida em espaços apropriados, espaços comerciais sobretudo, que podem variar conforme o poder de compra e os laços sociais das pessoas. A  depender da área da cidade, a sociabilidade pode se dar na rua,  em formas soltas e espontâneas, mas para muitos, os riscos, ou a sensação de estar pouco a vontade, são seu preço.

Acho que a gente se acostuma com essa vida estranhada em uma cidade que ainda tem alguns ares provincianos, porque os tantos afazeres, os planos de futuro, para nós, para os filhos, instam a seguir em frente. Isto é, a gente adia pensar criticamente e tirar conclusões do tipo "assim não dá pra ficar". A gente administra essas incômodas constatações e mais os lamentos por assistir passivamente as mudanças nos espaços da cidade, nos edifícios que são cada vez mais altos, cada vez mais fechados sobre si, que investem na beleza de fachada, sobretudo agora com as luzes do Natal.

Não pude deixar de lembrar o antigo poema de Manuel Bandeira sobre um vulto que vira mexendo em um monte de lixo, parecendo um animal e que, ao chegar perto, percebeu tratar-se de uma pessoa.

O que vi é um clichê no nosso meio urbano. O direito à cidade é  um  privilégio. E a gente vai levando.




sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Sobre mulheres pescadoras em um evento de engenheiros e técnicos de pesca

A realização conjunta IV Semana de Engenharia de Pesca e II Semana de Técnico em Pesca e Aquicultra do Pará, de 13 a 16 de dezembro de 2010 na Universidade Federal Rural da Amazônia, em Belém, teve como slogan uma frase que apontava para uma ciência aplicada em prol das comunidades que vivem das lides pesqueiras: Ciência como veículo de difusão e tecnologia na Engenharia de Pesca para as comunidades pesqueiras e aquícolas
Durante a discussão de uma das mesas a que pude assitir, sobre o aproveitamento dos produtos da pesca, argumentava-se que esse processamento, ainda longe de ser efetivado na medida do volume de pescado produzido no Pará,  contribuiria para reduzir a pobreza das comunidades. Uma das autoras fechou sua palestra lembrando as grandes possibilidades e os desafios maiores para que isso se torne realidade. A propósito, participantes da mesa  instaram os alunos para que, em sua vida profissional, não viessem a esquecer esses princípios de produção de ciência e tecnologia comprometidas com a promoção humana.
A mesa seguinte, para a qual fui convidada a expor, versava sobre organização das mulheres pescadoras no Estado do Pará. Acho que vale uma reflexão sobre  a inclusão dessa mesa na programação. A própria temática é fruto de mudanças que vêm ocorrendo no Brasil e em outros países, sobretudo a partir de meados dos anos 1990, quando se começou a prestar  mais atenção  à presença feminina, que ocorre de muitas maneiras no setor pesqueiro. 
A atenção à divisão sexual do trabalho no setor deriva de muitos fatores. Por exemplo, as evidências cada vez maiores de degradação dos principais recursos pesqueiros, decorrente do padrão predominante de desenvolvimento da pesca até então, levaram a uma maior sensibilidade para a racionalidade de outras práticas tecnológicas e para comunidades que haviam sido classificadas como rudimentares e necessitadas de se modernizarem. 
Em linhas gerais, como é conhecido, aquele padrão centrara-se na intensificação dos esforços de captura sobre espécies de  valor comercial, como atuns, lagostas, camarões,  sardinhas, bagres para exportação, como a piramutaba no caso do litoral amazônico, dentre outras. Tecnologias de crescente poder de predação foram desenvolvidas - como os arrastos motorizados - que viabilizaram a vertiginosa expansão da indústria do pescado, notadamente entre as décadas de 1970 e 1980.  
Evolução da produção pesqueira mundial - 1950-2002 (FAO, 2004)

Muitos estudos e movimentos sociais já deixaram claro que o estilo de expansão da pesca extrativa deu-se em detrimento do meio ambiente e das comunidades de pescadores artesanais, chamados também de pescadores de pequena escala, que secularmente produziram e abasteceram os mercados. E as comunidades dizem respeito aos conjuntos de pessoas que as formam, com suas relações e culturas, mulheres e homens de diferentes idades, formas de colaboração, conflitos e histórias. 
Correlativamente a isso, os sistemas de administração pesqueira distanciaram-se das comunidades, foram centralizados em burocracias estatais ou, mais recentemente, privatizados, como ocorre com as quotas transferíveis de pesca em alguns países. As formas locais de gestão, ou seja, de regulação do acesso  e uso dos territórios de pesca, foram o mais das vezes ignoradas ou  desestruturadas. Nessa época do "desenvolvimentismo", não se falava em co-gestão, gestão participativa ou gestão comunitária na pesca.

Por outro lado, a atenção à presença das mulheres deve-se, também, a mobilizações sociais relacionadas à defesa dos interesses das categorias de pescadores artesanais e à influência de movimentos feministas e de mulheres trabalhadoras na pesca e em outros setores, em particular na agricultura. Há, ainda, a influência dos movimentos ambientalistas, da consciência ambiental e de pesquisas que vêm sendo feitas nos últimos anos sobre o assunto, como mostra uma consulta ao sítio Web of Sciences na internet. 

Desse modo, embora a inserção do tema das mulheres em eventos dessa natureza já não cause a mesma surpresa que antes, penso que ela é sempre motivo de alegria. Pois, decerto, isso traduz as novas concepções que estão a balizar a formação dos quadros técnicos e científicos na área,  que o slogan do evento convida a pensar: não a distância  autosuficiente do saber acadêmico frente a seus "objetos", mas uma compreensão da responsabilidade social dessa produção. 
Penso que, ao contemplar a temática, os organizadores compartilham da concepção ampliada de trabalhadores da pesca que encontra eco na legislação brasileira recente e que vem responder a persistentes demandas das mulheres nas comunidades, por reconhecimento profissional e político.
Embora minha exposição tenha suscitado poucas perguntas da platéia, vale registrar que após a mesa fui procurada por dois alunos do primeiro ano do curso de técnicas em aquicultura, no município de Castanhal, no Pará. Eles disseram estar estudando a participação das mulheres na aquicultura e, por isso, buscavam bibliografia relacionada. Interessante esse olhar iniciante do campo de estudo a partir da condição das mulheres que lá trabalham!

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Homenagens à grande pesquisadora

Tributo de Saudade a Saffioti
Maria Luzia Miranda Álvares* 
Heleieth I.B. Saffioti , a grande pesquisadora, pensadora, professora, feminista faleceu no ultimo dia 13, aos 76 anos, em São Paulo/SP. O mundo intelectual brasileiro perdeu não só uma grande incentivadora dos estudos sobre a questão da mulher, mas e principalmente sobre a violência doméstica, o marxismo, a história das mulheres brasileiras, escrevendo um dos livros mais importantes para estes estudos hoje esgotado: “A Mulher na sociedade de classes- mito e realidade”)1969). Foi importante na formação de toda uma geração e esse testemunho pode ser dados por quantos leram seus livros, artigos ou presenciaram suas conferências, palestras em tantos eventos nacionais e internacionais. 
http://politicaecronicas.blogspot.com/
 
Minha homenagem a Heleith Saffioti 
Ana Cleide Guedes Moreira*
 Hoje, São Paulo chuvosa, 
assiste a partida 
de uma feminista que mudou 
nossos rumos
de mulheres brasileiras.
Ela se vai, sabe-se lá para onde,
mas aqui deixará saudades.
Sua generosidade em analisar a si mesma,
enquanto pensava em todas, 
foi talvez sua maior grandeza.
*Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Pará 
 
Cristiane Faustino*
... de fato uma das maiores referências para o pensamento e ação feministas,
 especialmente no que se refere ao desvelamento das privações que as 
mulheres enfrentam desde a vida e trabalho domésticos!
* Instituto Terramar
Ida Lenir Gonçalves*
Eu não sou feminista, mas reconheço a contribuição de todos aqueles e 
aquelas que abriram caminhos para que hoje pudéssemos ser cidadãs, donas
 do nosso próprio nariz.  
Enfim, os precursores dessa luta mostraram que as mulheres são diferentes sim,
 mas não são o estereótipo estabelecido de fêmea, amante e mãe que lhes 
foi imposto e que assumiram durante milênios. 
* http://diariodeumamulherdespeitada.wordpress.com 
 
Maria Antônia Nascimento*
... embora ela não rejeitasse a categoria de gênero que, se
tornou hegemônica no contexto da produção feminista nas últimas
décadas, ela como Mary Castro, vinham advertindo para o caráter
extremamente palatável da mesma, o que pode implicar, segundo elas, uma
despolitização da exploração e opressão das mulheres na atualidade.
Neste sentido, ela não abria mão da relevância do conceito de
patriarcado no contexto do capitalismo contemporâneo.
Saffioti VIVE!
 * Docente do Mestrado em Serviço Social, Universidade Federal do Pará
 
Izaura Fischer*
Ela realmente  
deixa um vácuo nas reflexões sobre a condição das mulheres. No  
entanto, como profunda conhecedora do assunto, ela nos deixou também  
um legado importante sobre a temática que ainda vamos passar alguns  
anos para ter um verdadeiro entendimento sobre tudo o que ela escreveu.
Eu e a colega Lígia Melo tivemos a opornidade de desfrutar da sua  
companhia algumas vezes e sempre ela tinha o que nos ensinar e, nós o  
que aprendermos com ela. Uma vez fomos convidadas por ela a ir a sua  
casa em S. Paulo, na Praça da República. Em seu apartamento super  
organizado e bonito passamos muitas horas trocando idéias, jogando  
conversa fora e sorrindo, enquanto degustávamos um bom vinho  
acompanhado de uma boa tábua de frios que ela mesma preparou. Naquele  
momento podemos ver que por tras da rigidez que ela demonstrava pensar  
e viver existia aquela pessoa leve que sorria bastante e que nos  
tratava com muito respeito e carinho. Ouvia nossas idéias sobre as  
mulheres rurais, ao mesmo tempo em que discutia e apontava caminhos  
possíveis para pensarmos. Essa lembrança nós guardamos dela com muito  
apreço, ao mesmo tempo em que continuamos a nossa busca no  
entendimento criterioso que ela nos deixou sobre a condição das  
mulheres, temática que coerentemente se destinou a pensar durante toda  
a sua trajetória acadêmica política. Em um dos seus últimos artigos  
produzido e publicado pelo SOSCORPO ela convida as acadêmicas  
feministas a refletirem sobre ecologia ao indagar sobre Quantos sexos?  
Quantos gêneros? Unissexo/unigênero. Quem sabe essa seria a temática  
sobre a qual iria refletir se não tivesse sua vida interrompida nesse  
momento?
*Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco - Pernambuco
 
Maria José*
Heleieth Saffioti politiza o conceito de gênero a partir da condição da mulher, 
contribuindo para que esta categoria gênero (...) fortaleça as lutas e seja mais um instrumento
para desvelar as desigualdades e explicitar a construção social da desigualdade. 
Sua contribuição, que é relacionar as categorias de gênero e classe, o fez de forma muito
importante para o Brasil, onde a luta pela igualdade tem como questões estruturantes o gênero, 
a raça e a classe.
* Conselho Pastoral de Pescadores - Bahia 

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Uma grande pesquisadora sobre a condição da mulher

Através do GEPEM (Grupo de Estudos e Pesquisas Eneida de Moraes sobre Mulher e Relações de Gênero), soube hoje da morte da Professora Heleieth Saffioti, uma das pesquisadoras que abriu ricos caminhos de investigação sobre a condição social da mulher no Brasil. Caminhos que não mais fecharam ou, melhor dizendo, enveredaram por vias muito profícuas, através dos estudos feministas e de gênero desde então.

Não a conheci pessoalmente. Mas, certamente, compartilho com muitos colegas o reconhecimento de que ela foi uma referência na formação dos cientistas sociais brasileiros. Em seu grande livro A mulher na sociedade de classes, nos anos 1970, sob uma perspectiva marxista, ela levou seus leitores a compreenderem essa "condição", ou seja, essa posição social particular da mulher, seu status diferenciado do status dos homens, na dinâmica social mais ampla. As discriminações que as mulheres sofriam, expressas com especial clareza nas principais características de sua inserção no mercado de trabalho, não eram resultado de uma disfunção, ou de uma visão atrasada, sobretudo em sociedades economicamente menos desenvolvidas. Visão que, portanto, seria superada com a modernização. Saffioti evidenciava, por exemplo, através das estatísticas sobre trabalho feminino no Brasil, o quanto elas estavam atrás em carteira de trabalho assinada, salários e acesso ao emprego formal.


A notar que, com sua respeitável bagagem acadêmica, ela elaborou um estudo pioneiro sobre o emprego doméstico - que era então, disparado, o principal absorvedor da força de trabalho feminina no país. Eram trabalhadoras que tinham alcançado há apenas poucos anos, em 1972, uma cobertura mais convincente de direitos trabalhistas. A nova legislação deixava para trás aspectos das relações servis que as profissões domésticas haviam recebido do escravismo e que teimavam em permanecer nas relações entre patrões/patroas e empregados, sobretudo empregadas, pois eram mulheres que prevaleciam numericamente nessas profissões.

Pois bem, Heleieth Saffioti analisou com notável profundidade teórica e empírica, várias teias que ligavam as discriminações, não só de gênero, mas também étnicas, e as rodas da economia capitalista. Também no capitalismo moderno, a divisão sexual do trabalho era um elemento estrutural da ordem social. Neste caso, herdando princípios de classificação subalterna historicamente anteriores, as mulheres apresentavam-se como força de trabalho passível de um grau de exploração mais acentuada, em benefício dos empregadores. Na condição social da mulher trabalhadora conjugavam-se sistemas discriminatórios de gênero e de classe, contribuindo a sua maneira para a reprodução do modo de produção cujo móvel é a acumulação. Ademais, as mulheres, que haviam sido alvo de pouca atenção entre os clássicos das Ciências Sociais, apareciam também desempenhando papéis de grande relevo na sustentação do sistema econômico. De um lado, concebidas e auto concebendo-se como "ajudantes", trabalhadoras secundárias, de menor importância, elas assumiam com frequência funções que Marx havia analisado como parte do "exército industrial de reserva", do tipo que podiam ser dispensadas e reabsorvidas conforme os ciclos econômicos. E, ainda, com seu labor gratuito na manutenção cotidiana dos trabalhadores da ativa e das próximas gerações, as mulheres no lar também foram percebidas como estruturalmente ligadas com a reprodução da ordem social de classe. Essas atribuições naturalizadas como femininas, contribuíam para rebaixar o valor da mão de obra no mercado. As ideologias de gênero amenizavam a percepção dessas formas de exploração que se davam dentro e fora dos espaços da produção econômica.

Estas linhas sobre seus estudos de fato não fazem justiça à obra da autora e ao impacto que suscitou no meio acadêmico. Faço estas reflexões no sentido de reafirmar a importância de um estudo que pioneiramente no Brasil analisou as vivências das mulheres trabalhadoras e sua importância sociológica. Suas pesquisas contribuíram para uma compreensão mais política dos trabalhos no lar, para a politização da categoria cuidado,  que a pesquisa feminista impulsionou e que o movimento feminista conseguiu muitas vezes traduzir em políticas.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Capital cultural e economia: a Sociologia Econômica de Pierre Bourdieu

Em suas análises sociológicas sobre o campo da economia, Pierre Bourdieu chamou a atenção que os agentes econômicos em concorrência - empresas, indivíduos, organizações, produtores, consumidores - são dotados de diferentes estoques de capitais. Mas, não se trata só de capitais no sentido econômico estrito, ou na forma de competências e formação especializada. Ele prestou atenção, particularmente, ao que chamou de capital cultural e social. 

Ele formulou esses conceitos para poder explicitar o que faz com que investimentos semelhantes de capital econômico obtenham retornos diferentes no mercado. Assim, ele olhou para as propriedades não diretamente econômicas dos agentes. De um lado, as redes de relações de que  participam (capital social), redes que encerram recursos potencialmente mobilizáveis pelos membros; e, de outro lado, as habilidades culturais. Além das qualificações adquiridas na escola, ele tratou  sobretudo daquelas habilidades culturais adquiridas no grupo familiar ao  longo da socialização; delas advêm os habitus primários essenciais para operar nesse campo, tais como determinadas disposições relativas ao uso do tempo, ou uma certa visão estratégica.

Bourdieu demarcou sua perspectiva teórica daquela própria à análise econômica convencional, que parte de uma concepção abstrata de atores  sociais em busca de realizar seus interesses na troca e que tomam decisões racionalmente conforme os sinais emitidos pelo mercado, os sinais da oferta e da demanda. A perspectiva de Bourdieu, como se sabe, concebe que os agentes já trazem para a esfera das trocas propriedades extra-econômicas, suas redes de relações e seu domínio das práticas culturais, o que os distingue de antemão e os coloca em diferentes posições no campo. Na formação dessas conexões sociais e dessas competências culturais, novamente Bourdieu prestou atenção às experiências vividas desde o lar parental, além da escola. Assim, pôde dizer: o mais oculto e determinante socialmente dos investimentos educativos é a transmissão doméstica do capital cultural. (p. 73)*

... o rendimento escolar da ação escolar depende do capital cultural previamente investido pela família e o rendimento econômico e social do certificado escolar depende do capital social - também herdado - que pode ser colocado a seu serviço (p. 74)


Sua sofisticada análise sociológica da economia procura discernir as complexas formas de existência dessas habilidades que resultam do capital cultural dos agentes. Compreende-se, sob um novo olhar, o que parece evidente: o quanto a economia depende da sociedade e expressa as lutas sociais em torno da apropriação privilegiada dos capitais. 


O capital cultural é um ativo durável, não percebido como  capital, mas sim como virtude da pessoa. Ele adiciona valor ao seu capital econômico, manifestando-se sob três formas básicas:

no estado incorporado, na forma de disposições duráveis do organismo; no estado objetivado, sob a forma de bens culturais - quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas ...; e no estado institucionalizado, como certificados, diplomas... (p. 74)

A aquisição do capital cultural nessa forma mais profunda, inscrita no corpo, requer muito tempo e empenho. E ele se transmuta em uma atributo  da pessoa culta e cultivada, aparece como seu dom e, portanto, como signo de seus méritos pessoais, validando assim sua posição distinta no campo em questão:


O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez corpo e tornou-se parte integrante da "pessoa", um habitus. (...) Por consequência, ele apresenta um grau de dissimulação mais elevado do que o capital econômico e, por esse fato, está mais disposto a funcionar como capital simbólico, ou seja, desconhecido e reconhecido, exercendo um efeito de (des)conhecimento, por exemplo, no mercado matrimonial ou no mercado de bens culturais, onde o capital econômico não é plenamente reconhecido. (p. 75)

O autor refere-se aqui ao que chama de economia das grandes coleções de pintura, das grandes fundações culturais e à economia da assistência, da generosidade e dos donativos, que dependem de um forte capital cultural. Para ele, a visão economicista dessa economia simbólica não apreende a química social pela qual o capital econômico se transforma em capital simbólico, capital denegado ou, mais precisamente, não reconhecido. Bourdieu destacou que há uma lógica da distinção que garante benefícios materiais e simbólicos aos detentores de um capital cultural sólido. Esse lado simbólico da economia, que propicia ganhos extra a ativos econômicos, aproveita-se da raridade relativa dos bens simbólicos. Considere-se, nesse sentido, a grande vantagem competitiva daqueles que têm meios econômicos e culturais de prolongar os estudos dos filhos além do mínimo necessário à reprodução da força de trabalho menos valorizada em dado momento histórico

O capital cultural que os agentes econômicos em concorrência dispõem está muito ligado às condições sociais e econômicas das famílias de origem. De um lado, condições que a família teve de proceder à transmissão desse capital o mais cedo possível na vida da criança. E, de outro, a condição de poder prolongar o empreendimento de aquisição de capital cultural pela criança, o que depende do tempo livre que a família pode dedicar a isso, desde que liberada das necessidades diárias de prover o sustento (p. 76).

Há, também, o capital cultural objetivado em bens que podem ser transmitidos como o capital econômico, a exemplo de quadros, escritos, monumentos, obras de arte, máquinas, computadores... Pode haver desencontro entre quem possui os instrumentos  de apropriação desses bens (dinheiro, equipamentos) e quem possui os meios técnicos de se apropriar especificamente deles, isto é, o know-how tecnológico, científico, ou cultural que convém. 

http://museuvirtualsemanaartemoderna.arteblog.com.br/9608/PESCADOR-TARSILA-DO-AMARAL/ *
* Essa imagem do quadro "O Pescador", de Tarsila do Amaral, foi baixada do blog do artista plástico Nicéas Romeo Zanchett.
 

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quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A escola, a igualdade formal e as desigualdades substantivas

Pierre Bourdieu no artigo A Escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura*

Escritas em meados da década de 1960, essas linhas do sociólogo francês Pierre Bourdieu - que tanto contribuiu para uma crítica sociológica do sistema ecucacional moderno - fustigam a instituição escolar em seu papel de reduzir desigualdades sociais. Ele questiona a função esperada da educação de ser um canal efetivo de ascensão social às crianças, independentemente de seu meio social e de sua posição de classe. 

A releitura desse texto, embora não traga mais o sabor de novidade e de ruptura que teve em seus leitores na época, ainda é capaz de surpreender. Essa análise continua a chamar atenção aos muitos mecanismos sociais, sobretudo invisíveis, que operam para produzir e reproduzir a distância que há entre democracia formal e democracia substantiva.

Nada melhor para abordar essa problemática do que examinar o papel da escola. A instituição inscrita no coração da democracia moderna acaba por engendrar o seu contrário; nas palavras do próprio Bourdieu, ela acaba por reforçar o privilégio cultural. Mas, no início do século XIX, a França republicana não se vingara do seu passado feudal justamente ao deslocar para um plano secundário as heranças e ao pretender formar cidadãos? A educação pública e gratuita não visa justamente realçar o valor das capacidades adquiridas, independente de cor, sexo ou etnia? 


Essas reflexões do autor merecem ser revisitadas no momento brasileiro atual, de mudança de governo, quando compreensivelmente se reacendem esperanças de acertar o passo na construção de um país menos injusto. Sobretudo, menos concentrador de oportunidades. Volta-se a celebrar as virtudes da educação como instrumento de mudança, geradora de efeitos a longo prazo, que ultrapassam os ganhos imediatos que costumam nortear decisões políticas feitas de olho no calendário eleitoral. Não é a toa que, com relativa frequência, fala-se do êxito econômico de países que "levaram a educação a sério", como a Coréia do Sul.

É oportuno lembrar que a profundidade da análise de Bourdieu se deve em parte ao fato de que ela foi feita precisamente na França. Nesse país, fruto dos ideais da Revolução de 1789 e das lutas de republicanos e socialistas, a educação tornou-se muito democratizada. A escola pública, uma realidade incomparavelmente maior na França e na Europa, do que no Brasil. As escolas públicas brasileiras de ensino fundamental e médio são precárias, a despeito de inegáveis avanços, das muitas iniciativas de programas que vão contra a maré da precariedade. Mas, sabe-se que uma comparação simples entre a infra estrutura de escolas públicas e privadas já apontaria para a função "conservadora" da escola, nas palavras do autor, a função de conservar privilégios e reproduzir barreiras. Quando se agregam a esses fatores as características dos espaços onde as escolas se situam, como por exemplo a qualidade de vida de suas vizinhanças, não é preciso ir muito fundo na busca dos mecanismos pelos quais a escola contribui para manter o status quo.


Mas, justamente, ao tratar de um contexto social e histórico menos marcado por esses fatores tão explícitos, Pierre Bourdieu registrou seus aspectos mais sutis, mais sofisticados e, portanto, mais insidiosos, poque ao mesmo tempo legitimam as desigualdades. Quando ele analisou os dados sobre êxito escolar e origem social dos alunos e observou a forte correlação entre ambos, ele destacou as várias implicações dessa correlação. Dentre estas, o que ele chamou de violência simbólica: a aceitação pelos dominados, de sua posição social inferior.  Os membros de classes e frações de classe desfavorecidas, que proporcionalmente concentram
fracassados da escola em maior número, naturalizam posições que nada têm de natural. São, sim, arbitrárias, porque produtos de história social e política. 

Ele abriu seu texto falando que somente uma "inércia cultural" permitia que ainda se pensasse o sistema escolar como fator de mobilidade social. Ao contrário, era "um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural".
Do ponto de vista prático, essa leitura indica que não se trata só de democratizar o acesso à escola. É preciso levar em conta os atributos extra-escola que os educandos trazem - os "privilégios culturais" - e que, portanto, também aqui não basta tratar igualmente os desiguais.

A ação do privilégio escolar só é percebida, na maior parte das vezes, sob suas formas mais grosseiras, isto é, como recomendações ou relações, ajuda no trabalho escolar ou ensino suplementar, informação sobre o sistema de ensino e as perspectivas profissionais. Na realidade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas, um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e profundamente interiorizados, que contribui para definir as atitudes face ao capital cultural e à instituição escolar. (p. 41/2)

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