terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Natal, nossa humanidade comum e nossas famílias

Aos leitores deste Blog.
Aproveitamos o espírito natalino para expressar mensagens de amizade, força e votos de um ano novo melhor. São votos genuínos. A esperança que se acende em meio aos temores e aos riscos comuns, em tempos de incertezas, unem-nos neste momento forte para compartilhar este lado mais belo de nossa complicada humanidade. Ou seja, nossa fome de bem, de vida boa para o maior número e de alegria. 
Se o Natal nos possibilita voltar a atenção para a fonte primeira desta data, a mensagem do Menino, temos então o privilégio de nos maravilhar com aquele que foi um momento maior de nossa história coletiva. E, também, de nos admirar com o fato de estarmos ainda hoje a nos organizar para a "Noite Feliz", a destinar o melhor de nossos esforços para vivê-lo como um momento especial, se possível com aqueles a quem mais amamos, não importa de que meios materiais disponhamos. Como somos capazes de fazer isso? É certo que muito do Natal é consumo, é comércio... mas todos sabemos que não é só, é muito mais! O que esse movimento continua a nos ensinar, a nos chamar e a advertir?
Esse menino que está para renascer, traz com ele uma radical mensagem de amor e paz, capaz de mudar nosso modo de ser e, também, a organização de nossa vida social. Quando ele nos convida a olhar para todo ser humano como "filho", herdeiro do Reino, a todos como merecedores dessa paz e dessa felicidade, quando ele próprio sendo Rei viveu entre os "mais pequeninos", iniciou a transmissão da Boa Nova já ao nascer, ele nos incitava a mudar para melhor.
O tema do perdão, a reconciliação e, ainda, a humildade como marca de respeito e reconhecimento pelo outro, foram temas de primeira grandeza. Somos seres difíceis, temos sentimentos baixos, orgulho e sede de poder e precisamos sempre ser lembrados do que somos, em contraposição ao que podemos ser. E, para trilhar esse caminho, dispomos de uma qualidade que prezamos acima de muitas coisas: o livre-arbítrio, nossa liberdade de escolha e de ação. Somos convidados a ser melhores, mas podemos escolher não sê-lo. E quanto pendemos para esta negativa!
Mas o Natal, festa cíclica que tanto amamos, fonte de lembranças queridas de quase toda infância, rememora a mensagem do amor maior, sem medidas. E, assim, começamos a entender como foi possível para os primeiros seguidores, as primeiras comunidades cristãs e seus continuadores, tocar os poderes constituídos, "contaminar" Estados e sistemas políticos e nos permitir, dois milênios depois, continuar a reviver um dos maiores momentos de nossa história terrena. Independentemente de nossa filiação religiosa, ou da ausência dessa filiação, a mensagem subverte, questiona fundo... Assim, podemos sonhar e exercitar esse potencial maior que Jesus veio mostrar que temos, que podemos e que devemos. Amar ao próximo como a nós mesmos, expressando nosso amor por Deus. A fonte da vida plena sendo não a Lei, suas formalidades, mas o amor, a fraternidade universal.
Neste Natal, desejo aos que estão lendo estas linhas que curtam suas famílias, seus próximos mais próximos, uma benção. Mesmo quando as relações no meio da família não vão tão bem, elas sempre merecem nosso empenho, nosso esforço para faze-las melhor, para honrar e agradecer por essas pessoas existirem em nossas vidas. Deixar a família se esvair é uma perda extraordinária, um custo altíssimo. Investir no amor familial, aproveitando o Natal  uma oportunidade que não se deve perder. Todos temos algum defeito, somos todos humanos. Mas, sobretudo, todos podemos melhorar. E, a partir daí, sentirmo-nos também fortes para conviver com nossa família maior, todos os próximos conforme ensinou Jesus ao falar sobre o bom samaritano.No caso de Belém, de nossa Belém assim chamada em homenagem à Belém original, investir para fazer dela uma cidade humana e receptiva, armando nela manjedouras de acolhimento e atenção. Feliz Natal e Feliz Ano Novo para todos nós!

sexta-feira, 28 de junho de 2013

Homenagem ao Prof. José Marcelino

Anteontem faleceu o Professor José Marcelino Monteiro da Costa, de quem tive o privilégio de ser aluna. Escrevi um pequeno texto em sua homenagem, no que fui seguida por outros colegas da UFPA que lhe prestaram reconhecimento. Merece destaque a homenagem de Heraldo Mas ao colega.
 
José Marcelino da Costa foi, para mim, um grande professor de Economia Brasileira. Aprendi muito e devo, portanto, algumas conquistas de minha carreira profissional às bases teóricas que obtive como sua aluna. Também tive embates políticos com ele durante as mobilizações para mudança de coordenação do NAEA, quando eu lá estudava, mas esses embates não mudaram em nada o respeito e reconhecimento. Há cerca de dois anos encontrei com ele em um restaurante em Belém e pude manifestar-lhe pessoalmente esse meu senso de gratidão, ao que ele agradeceu. Fico contente de ter feito isso. Foi um construtor, prestou efetivas contribuições na formação de muita gente de valor nestas terras amazônicas.

De Heraldo Maués:
Colegas,

Uno-me à manifestação da colega e amiga Cristina. Trabalhei com o Marcelino no NAEA desde 1977, quando ali entrei como professor do PLADES, a minha primeira experiência de ensino na pós-graduação. Pouco depois, em 1980, fui vice-coordenador do PLADES na gestão do coordenador Carlos Coimbra que, por razões de saúde, teve de se afastar, deixando-me na condição de coordenador do mestrado. Com isso passei a ter maior aproximação com Marcelino, ainda no período da ditadura militar. O NAEA era então uma espécie de refúgio para todos aqueles que queriam discutir uma teoria social e econ?mica mais avançada, inclusive os textos de Marx e Engels. Marcelino uma vez me alertou que eu estava sendo monitorado pelo SNI e que havia restrições para que participasse de evento importante, promovido pelo NAEA em Belém, com a participação de diplomatas brasileiros e estrangeiros (estes representantes de toda a Pan-Amaz?nia, de onde eram recrutados muitos dos alunos do PLADES). Ele no entanto garantiu minha presença, que estava sendo ameaçada, por restrições daquele órgão cuja ingerência era poderosa nas universidades brasileiras.

Mais tarde, após a conclusão das disciplinas do meu doutorado, quando concorri à coordenação do NAEA, nosso grupo era de oposição àquele apoiado por Marcelino. Isso no entanto não impediu que continuássemos mantendo relações cordiais, durante toda a minha gestão à frente do NAEA (1985-1989).

Presto aqui esta homenagem ao Marcelino que, juntamente como Armando Mendes,  Alexei Turenko e outros colegas da antiga Faculdade de Economia, gestou a ideia de um núcleo de integração da pesquisa e pós-graduação na UFPA e que foi quem o implantou e coordenou por vários anos. O NAEA, como núcleo de integração, teve e continua tendo papel fundamental na pesquisa e pós-graduação da UFPA, tendo, num certo sentido, também influenciado na origem de vários outros programas de pós-graduação, inclusivo o nosso, o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais/PPGCS, que já tem formado um contingente importante de mestres e doutores em sociologia e antropologia no Pará.

Atenciosamente

Heraldo Maués
De Eneida Assis:


Puxa Cristina,

Li a sua mensagem somente agora pela manhã desta quinta, fiz o NAEA em 1976 à época praticamente o único local que oferecia uma oportunidade de se fazer uma pós-graduação. Foi muito bom, o Juan trabalhava com ele e havia professores ótimos, alguns já se foram como o Constantino, Tupiassu, Roberto. Era um ambiente bom e estimulante. Nessa época funcionava nos altos do IFCH, Tua noticia me fez lembrar de alguns de minha turma: Graça Godinho, Antonio Maria da Sociologia, Luís Brito do BASA, Carmona da Venezuela, MariaEugenia Rios, Espírito Santo da Geografia, Mano Alceu do BASA e Luís Dendê que recebeu esse nome devido ser à época um dos responsáveis pelos estudos sobre aplicabilidade do dendê em outras áreas da industria, o Marcelino conversava muito com a turma. Ele vai deixar saudades.


De Luzia Álvares (no Facebook):

Outra pessoa que partiu ontem: José Marcelino Monteiro da Costa, um dos fundadores do NAEA e meu professor na instituição. Esteve na minha banca de seleção a esse núcleo e sempre foi respeitado. Tivemos embates por lá a quando do inicio das mudanças de coordenação , mas nunca uma contenda para afetar seus compromissos com a turma, àquela altura: Antonio Lamarão Corrêa, Marco Aurélio Arbage Lobo, Moacir Feitosa (Maranhão), Geraldo Gobitch, Aldenor do Nascimento. Condolências aos familiares e paz à alma do Professor Marcelino. 



segunda-feira, 15 de abril de 2013

A um jovem de 20 anos

Como mostrar a um jovem que 20 anos é muito cedo? Que ainda dá tempo de errar, de aprender (aliás, sempre, diga-se de passagem), que uma das coisas boas do passar do tempo (apesar de que o "senhora" precede todas as conversações, mesmo num bar... ai!), uma das coisas boas é a perspectiva diferente da vida, a tal "maturidade", uma calma para aceitar as limitações... A noção de que, enfim, vale a pena!!! Mesmo que o caminho seja duro. A gente sabe que escolhas nessa fase da vida são importantes, mas não são definitivas. 

Eu queria dizer a esse jovem o que corre em muitas postagens no Facebook, sobre a necessidade de se ter o pensamento aberto, a esperança, a curiosidade... O que parece sem saída, sem sentido... hoje, vai mudar! Vai assumir outra importância! Que passado o tempo que a gente tiver a graça de poder usufruir, o dom de usufruir, de aprender com a vida e de comemorar aqueles aniversários da tal terceira idade... a gente até se arrepende de ter perdido tempo com sentimentos e angústias que são compreensíveis, mas que passam, passam... Eu queria dizer uma mensagem que tocasse o coração de um jovem, coisas que eu não me disse e não ouvi na minha época, porque como esse jovem triste de hoje, eu tive tristezas e angústias, e tristezas e angústias e, sobretudo, dúvidas, incertezas e questões sobre o sentido... E que eu também estive fechada para ouvir essas lições envelhecidas (porque são lições de todas as épocas). Só chegando na cinquentena é que a gente percebe a preciosidade do tempo que nos é dado viver... 

E compreende a grandeza de pessoas como a Cora Coralina, minha grande colega Luzia Álvares e tantas outras que souberam e sabem construir sempre, que se realizaram no trabalho mesmo com filhos e responsabilidades familiares... E compreende a grandeza dessas mulheres e homens que sofrem com vidas tão limitadas, trabalho, casa, trabalho, contas a pagar, direitos espoliados... 

E, especialmente, dizer a um jovem envolvido na violência mais barra pesada, que tira a vida de outrem por ninharia e que também perde a vida por nada, que eles também têm sua cota de ação para melhorar o seu contexto, para progredir, pois sucumbir às circunstâncias objetivas não é lei natural nem social. Que esses jovens nesse Brasil profundo têm sua parcela na evolução de nós todos, na escrita dessa obra conjunta que é nossa história no planeta, essa diversidade social, cultural extraordinária! Mesmo que muito louca, é uma grande história. Quando a gente está muito jovem não enxerga isso, muitas vezes, mas é uma baita história! 

E, incrível, a grande força da mudança social, da reescrita da história para melhor, é a juventude, as novas gerações, que contestam, questionam, desdenham do que é ultrapassado...

Juventude é dialética por excelência, síntese de contradições, mudança e conservação, absoluto e relativo. Nosso mundo maltrata os jovens e, ao mesmo tempo, evolui em grande parte por conta deles.  

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Medo, preconceito e deixa estar o social

Essa frase é muito boa para pensar: O que se opõe à fé não é o ateísmo, mas o medo. O medo paraliza e isola as pessoas das outras pessoas. É de Leonardo Boff, em entrevista que consta no seu site. 

Na nossa cidade, conhecemos o medo que isola as pessoas. Se não se cruzar diretamente com a fonte do medo, basta abrir o jornal. Esse medo também paralisa, embota a vontade e a criatividade. Um efeito mais grave é que ele reacende preconceitos e fomenta apartheids que não cabem mais na civilização dos direitos humanos e universais. Mas, no caminho que vamos trilhando, reforçamos o egoísmo como característica principal da organização social. E perde-se a fé na possibilidade de mudar essa organização, reformando o contexto. Assim, em Belém por exemplo, corre solta a expansão imobiliária orientada só pelos padrões do mercado, sem orientação coletiva ou visão da cidade como bem público das gerações presentes e futuras. A cidade cresce sob a lógica do cada um por si, conforme o que se tem, o que explica o desconhecimento do plano diretor

Reagir coletivamente contra as fontes do medo parece impensável, tarefa inalcançável. E vai-se levando a vida, assistindo a propagandas de carro ou de bens de consumo fazendo de conta que não se sabe que não podem ser usufruídos como estão sendo mostrados. Ou planejando o programinha de lazer do fim de semana, torcendo para que saia tudo bem, tantos são os riscos... A grande fonte do medo, a desigualdade geral e duradoura, inscrita no modelo que consagra o usufruto de uns - indiferente à privação de tantos outros - essa fonte vai sendo mantida. E seus efeitos, sofridos ou pensados em silêncio. Mas, com certeza, pesando no coração de cada um. 

Como introduzir a fé? Uma fé mobilizadora, estimulante da ação coletiva, da reação contra essa vida presa, frente a qual o sentimento geral é de impotência e de falta de sentido? Concordo que tradições religiosas que pregam a centralidade do amor ao próximo, do perdão, do sair de si e dar ao outro, lições sempre válidas, têm cada vez mais um lugar no conjunto de esforços para construir o "céu" neste mundo. Sobretudo, pelo amálgama que essas mensagens propõem entre o individual e o coletivo, entre a pessoa e sua sociedade, uma não se opondo à outra, uma precisando da outra. Mudar o mundo não dispensa mudar a si, tentar ser uma pessoa melhor. E, cada vez mais, as religiões expressam a noção da interdependência e interpenetração entre sociedade e natureza, revertendo a antiga hierarquia que representava os humanos no topo da criação e a natureza a seu serviço.

As perspectivas religiosas fertilizam a busca do genuíno interesse próprio na realização do interesse comum. A espiritualidade, portanto, contribui na construção do mundo novo, promessa aberta e cada vez mais possível nos dias de hoje. Meios materiais e intelectuais, pelo menos, não nos faltam.

 

segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Sobre solidariedade e racionalidade ambiental

Recebi o seguinte comentário, da colega e parceira de pesquisa Maria José Aquino Teisserenc, referindo-se sobre a postagem "Atingidos de Belo Monte e a divisão do trabalho no século XXI". Ela suscita outras aplicações do pensamento de Durkheim, bem interessantes para pensarmos sobre solidariedade e diversidade social:


Concordo sobre a pertinência do raciocínio de Durkheim para pensar os desafios de hoje. A partir da idéia de solidariedade na apreciação sobre a divisão do trabalho social, a questão da interdependência (contraditória e complementar) da diversidade social, cultural, biológica, tem sido colocada por autores como Enrique Leff e Arturo Escobar como possível caminho a ser percorrido se quisermos fazer face ao totalitarismo da racionalidade de mercado (pela qual foi a Amazônia inventada e integrada às engrenagens do "Crescimento-Desenvolvimento-Modernização") e em defesa da promoção e da afirmação de uma outra racionalidade, a ambiental, talvez. Nesta outra racionalidade o diverso, o diferente, deve ser percebido como um outro pleno de alma, de legitimidade para ensinar, aprender, intercambiar... Continuaremos. 

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Atingidos de Belo Monte e a divisão do trabalho no século XXI


No noticiário desta manhã, mais uma manifestação de insatisfação por parte de comunidades atingidas pela Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará. São índios Juruna que bloquearam o acesso a um dos canteiros de obras, reclamando dos prejuízos à pesca devido à turvação das águas dos rios. Eles reivindicam compensações ambientais e a construção de poços artesianos nas aldeias. A situação de tais populações, que dessa forma aparecem como problema, um obstáculo no desenvolvimento, ganha uma luz interessante se analisada a partir do quadro de referência que orientou a reflexão dos fundadores da sociologia na virada do século XIX para o XX. Em especial, as reflexões sobre o significado da divisão do trabalho. Destaca-se a obra de Emile Durkheim, na esteira da pioneira análise de Adam Smith, um século antes, que vira na divisão do trabalho em ascensão um fator chave da riqueza das nações

Mostrados assim, interrompendo os trabalhos, a imagem de alguns de seus representantes sentados à margem da estrada tendo a dialogar um funcionário da empresa Norte Engenharia, suscita a indagação das bases em que assenta o tal diálogo. A indagação não se aplica apenas a este  caso específico, mas às várias comunidades que se consideram atingidas pelos efeitos da barragem e injustiçadas tanto nas compensações recebidas quanto em seu direito legítimo de voz e poder de decisão nos processos em curso. Perguntas básicas: Há reconhecimento mútuo entre os atores em confronto? São os grupos indígenas plenamente reconhecidos, com um lugar social assegurado no conjunto da sociedade brasileira? Idem para os grupos camponeses e os extrativistas que utilizam os recursos naturais diretamente impactados.  

Por outro lado, a construção da hidrelétrica, pelas vicissitudes que marcam sua trajetória, pela tônica das relações com as populações locais, inscreve-se em uma tradição de ausência de pleno reconhecimento nas relações entre o Estado brasileiro e a sua porção norte, a região amazônica e seus entes federados. O Estado do Pará - e particularmente a maioria das populações locais - não dispõe do pleno reconhecimento de suas contribuições ao desenvolvimento do conjunto da sociedade nacional. Portanto, é parceiro menor. O próprio fato de a Eletronorte não ter escritório em Belém testemunha um quadro de desconhecimento, de estranheza. Portanto, falta a premissa básica do reconhecimento das mútuas contribuições que fundamenta as trocas baseadas na divisão do trabalho social, na perspectiva daqueles pensadores clássicos. Os termos da cooperação entre as partes não são negociados, mas impostos. Não se trata propriamente de troca, mas de uma apropriação quase unilateral, com compensações mal negociadas .

Estas reflexões vêm a propósito da re-leitura do conceito de divisão do trabalho para as aulas de Sociologia do Trabalho.  A tese original de Emile Durkheim era de que a divisão do trabalho própria das modernas sociedades industriais, longe de se resumir a processo econômico, era expressão de um novo tipo de solidariedade social, de um novo tipo de vínculo entre as pessoas, que se relacionam umas com as outras não mais por tradição, por hierarquia ou servidão, mas por interdependência, por se necessitarem mutuamente. O organismo como um todo não pode prescindir de suas várias funções, mesmo as aparentemente mais simples. É claro que a abordagem tinha muito de utopia. As greves e crises econômicas apontavam graves problemas e, nesse sentido, ele cunhou o conceito de anomia, para explicar os problemas de integração que se mostravam, por exemplo, no aparente aumento do suicídio, precisamente em sociedades avançadas economicamente. Já Marx tratara o fenômeno sob a lente da exploração do trabalho e, inicialmente, abordara o trabalho proletário como alienação. E Max Weber discutia o avanço da burocratização com a crescente racionalização das condutas que se consolidava nas várias esferas da vida social. Ela compunha o contexto de previsibilidade e de paz social necessário aos investimentos capitalistas e sua contabilidade   racional.

Mas, como é próprio dos autores clássicos, a abordagem da interdependência fruto da divisão do trabalho social, de Durkheim, ainda contribui para aguçar nossa reflexão sobre o que nos cerca. Em seus esforços para consolidar a Sociologia como ciência e, portanto, seu método próprio de tratar o social, ele estudou a divisão do trabalho como fonte de solidariedade. Sociólogo, recusando-se a ver na especialização crescente das funções somente o mecanismo econômico, fator de produtividade, via nelas, ao contrário, um testemunho de como as "partes" da sociedade precisavam umas das outras e tanto melhor quanto mais se especializavam para produzir o bem-estar do conjunto, dividindo as funções. A estruturação do Direito em áreas correspondentes à complexidade da vida era uma prova da necessidade de novas regras de convivência, não apenas regras repressivas (Direito Penal), mas também restitutivas (os ramos econômico, processual, trabalhista, familiar...). Dizia ele:

"... o mais notável efeito da divisão do trabalho não é aumentar o rendimento das funções divididas, mas torná-las solidárias. Seu papel, em todos esses casos, não é simplesmente embelezar ou melhorar sociedades existentes, mas tornar possíveis sociedades que, sem elas, não existiriam. (...) É possível que a utilidade econômica da divisão do trabalho tenha algo a ver com esse resultado, mas, em todo caso, ele supera infinitamente a esfera dos interesses puramente econômicos, pois consiste no estabelecimento de uma ordem social e moral sui generis. Há indivíduos ligados uns aos outros que, não fosse esse vínculo, seriam independentes; em vez de se desenvolverem separadamente, concertam seus esforços; são solidários, e de uma solidariedade que não age apenas nos curtos instantes em que os serviços se intercambiam, mas que se estende bem além disso". (p. 27) 

Subjacente a essa análise, está uma idéia de igualdade social básica entre os membros do coletivo, o que não quer dizer ausência de diferenças. Afinal, ainda que as contribuições de uns e outros sejam diferentes, elas não são menos necessárias ao todo social e as trocas a que dão lugar só se podem estabelecer entre sujeitos que se reconhecem parceiros na troca, com contribuições recíprocas, conquanto diversas. Pode-se pensar aqui idealmente na sociedade brasileira pluriétnica e multicultural, com sua identidade de nação fundada no reconhecimento mútuo de suas partes e, consequentemente, na função distributiva dos frutos do que essa sociedade em conjunto produz. 

O que me interessa reter no "velho" argumento durkheimiano é, justamente, a noção do reconhecimento social básico, uma noção que tantas vezes falta em contextos onde as desigualdades criam fossos sociais. Nada a ver com o sentido de solidariedade social orgânica, formulado pelo autor, ainda que situações de pobreza, miséria extrema, possam dar lugar a ações de "ajuda" aos necessitados. Grupos sociais concebidos apenas como necessitados, ou grupos aos quais não se atribui  reconhecimento social pleno, não são parceiros do intercâmbio social. São tidos  como incapazes de estabelecer trocas que valham a pena, ou  são vistos como carentes de recursos que justifiquem sua inserção na divisão do trabalho e suas trocas. As cenas das malfadadas negociações que cercam a construção da hidrelétrica remetem a esse tema do reconhecimento dos vários outros em presença.  Tem-se, aqui, déficits de reconhecimento: cultural, social, étnico, econômico, ambiental... 

Pode-se dizer com razão que essas idéias fortes do início do século XX, assentadas na idéia de sociedade, fazem pouco sentido hoje.  Mas elas ainda "são boas para pensar" sobre o nosso mundo. Os episódios que marcam a posição histórica das populações amazônicas nas negociações com o país, com outros países, estão a reafirmar os déficits de reconhecimento. As relações são de dominação, a integração se dá  sempre em benefício de interesses dominantes, o que limita já à partida os termos do intercâmbio, a menos que as capacidades de resistência consigam alterar alguns desses termos. As palavras do fundador da sociologia moderna, ao interpretar a divisão do trabalho como fonte da solidariedade moderna, mal se aplicam às relações de promoção do "desenvolvimento regional" entre nós, já de há muito tempo. 

É assim que no âmbito da Sociologia a própria idéia de sociedade como um todo mais ou menos ordenado, como um sistema integrado, com uma economia sustentada pelo Estado-nação, perdeu força. As levas de desempregados no cerne mesmo do mundo desenvolvido e a fraqueza dos respectivos governos em reverter as tendências de mercado estão a demonstrar que a idéia de sociedade - com suas partes ligadas pelo trabalho social - implodiu. O mesmo vale, entre nós, para o ingresso massivo de jovens na criminalidade.

O indivíduo moderno nasceu livre das amarras da tradição. Sobretudo nos anos dourados do capitalismo, entre meados dos anos 1940 a meados dos 1970, esteve relativamente protegido em sua liberdade pelos direitos de cidadania, esses instrumentos da solidariedade orgânica. Hoje, esses direitos são tornados supérfluos, um peso para a sobrevivência dos agentes no mercado. É preciso que cada um busque seus meios de sobreviver. Mas, o indivíduo do século XXI, como analisou Robert Reich no livro Supercapitalismo, cindiu-se em lados conflitantes: de um lado, é consumidor e investidor (à cata, portanto, das melhores taxas de retorno para suas aplicações); de outro, é cidadão de uma democracia. Ao mesmo tempo em que quer políticas sociais e proteção ao emprego e ao trabalho, não hesita em cobrar dos cuidadores de suas poupanças, as aplicações mais rentáveis. 

Se não é possível vislumbrar a solidariedade global que poderia conduzir ao internacionalismo das lutas sociais sonhado no século XIX, movimentos sociais hoje chamam a atenção para projetos locais de sociedade, para experiências de alternativas econômicas e à construção de novas redes sociais. São fundadas em bases menos abrangentes, mas não menos utópicas e enérgicas. 

Obra consultada: DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo, Martins fontes, 1999.

Notícia sobre manifestação dos índios Juruna está disponível em: 

quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

2013. Fios de esperança se renovam.

No Natal, na virada do ano, somos pródigos nos votos que dispensamos aos que nos são mais queridos, seja na família, no trabalho, no nosso local de moradia e mesmo a estranhos. Parece que a época faz relembrar nossa limitada capacidade de intervir sobre o futuro, por mais que se tenha riqueza e poder - afinal, uma doença pode estar à espreita, um acidente, um ato de violência, um amor que se vai... Portanto, nessa fragilidade essencial diante das incertezas e riscos, creio que somos na maior parte das vezes sinceros nos desejos que expressamos uns aos outros nestes dias. Não é só regra de cortesia. Mesmo que por instantes, somos genuínos na consideração pelos outros com quem dividimos a viagem da vida, no breve tempo que nos é dado viajar.

Apesar disso, como se deixar levar de coração leve pelo clima festivo e generoso se olhamos com um mínimo de atenção ao contexto social? De cara, a pobreza em meio à opulência rouba os direitos da maioria, explode em violência e corta a expectativa de vida e a possibilidade de esperança nos dias melhores para essa maioria. E não conseguimos emplacar projetos abrangentes para reverter esse curso inexorável da vida que é o oposto da generosidade. 

Mas, mesmo assim, o fiozinho de esperança fica, resiste e se renova todos os anos - que teimosia! Ele se expressa nos atos de tantos que agem em favor do próximo, na construção de um outro mundo. E é perceptível em mensagens como estas:

"O ano será novo se, em nós e à nossa volta, superarmos o velho. E velho é tudo aquilo que já não contribui para tornar a felicidade um direito de todos. À luz de um novo marco civilizatório há que superar o modelo desenvolvimentista-consumista e introduzir, no lugar do PIB, a FIB (Felicidade Interna Bruta), fundada na economia solidária e sustentável. [...]
Se o novo se faz advento em nossa vida espiritual, então com certeza teremos, sem milagres ou mágicas, um Feliz Ano-Novo, ainda que o mundo prossiga conflitivo; a crueldade travestida de doces princípios; e o ódio disfarçado de discurso amoroso". (Frei Betto, Feliz Ano Novo. Texto disponível em http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=73023. Acesso em 2 de janeiro de 2013).

E, em especial, nas mensagens do aniversariante de 25 de dezembro, há mais de dois mil anos. Uma delas foi resumida pelo Apóstolo Paulo em sua Carta aos Gálatas: "Não há mais diferença entre judeu e grego, entre escravo e homem livre, entre homem e mulher..." De fato, nesse referencial as desigualdades cediam lugar à condição de filhos e, portanto, de herdeiros de Deus, característica de todos. Por isso, arrematava ele: "Não nos cansemos de fazer o bem; se não desanimarmos, quando chegar o tempo, colheremos".