sábado, 26 de fevereiro de 2011

LITERATURA E PRECONCEITOS

"Na casa, ainda existem duas pessoas - tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo". Cito esse trecho do famoso livro de Monteiro Lobato, Reinações de Narizinho, a propósito de um tema que fez furor semana passada na Internet. Trata-se da Carta Aberta da escritora Ana Maria Gonçalves ao Ziraldo, vista em http://racismoambiental.net.br/2011/02/carta-aberta-ao-ziraldo-por-ana-maria-goncalves/. A carta reage a um desenho feito por Ziraldo para estampar as camisas de um bloco de carnaval carioca, que retrata Monteiro Lobato abraçado a uma mulata. 

O desenho desencadeou uma grande  polêmica  e motivou a carta aberta. Sua autora cita uma série de documentos escritos por Lobato que manifestam não apenas um racismo "de época", da primeira metade do século XX; os documentos mostram quase um racismo militante. Daí a grande decepção que a autora manifesta com Ziraldo. Sua carta suscitou uma enorme reação nas redes sociais, com opiniões tanto favoráveis à crítica da autora, quanto contrárias à "ditadura do politicamente correto" que não poderia estar presente na literatura, censurando-a. Muitos pensam, com razão, que o lugar de Monteiro Lobato no panteão dos escritores brasileiros é intocável, assim como a qualidade de sua escrita  que embalou gerações de crianças. 

Não entro no mérito da literatura de Lobato, pois não é esse o ponto. Minha filha leu quase todos os livros dele e tem uma gratíssima lembrança de suas páginas. Contudo, acho muito positivo que esses questionamentos sobre a visão de sociedade de Lobato venham à tona. Seus livros são adotados nas escolas brasileiras e, certamente, estão a exigir uma malabarismo dos professores para lidar com frases como a do início de "Reinações...", de modo a evitar não só a reprodução de estereótipos, como também cuidar para que nenhuma criança experimente qualquer sentimento de inferioridade no espaço escolar, espaço "oficial" de formação cultural e pessoal. 

É certo que a frase que destaquei trata de relações sociais históricas, costumes em um passado recente no Brasil - a negra de estimação. Refere-se à trabalhadora doméstica, mulher e negra via de regra, que permanecia décadas no seio de casas de famílias de classe média e alta, cuidando da casa e das crianças dos patrões. Eram também chamadas crias, meninas que iam do interior para as cidades na esperança do acesso ao estudo. Na região amazônica, frequentemente era uma menina de origem indígena. Misto de membro da família e empregada, essa posição era herança da escravidão. Muito mudou nesse campo, os empregados domésticos conquistaram direitos trabalhistas e sociais, ainda que bem mais tarde do que a maioria das profissões. Mas, quanto ao desvalor associado a posições sociais ou a cor da pele, a mudança é mais complicada. Dentre outras razões, porque tocam em visões de mundo e padrões muito enraizados. 

Os argumentos da carta aberta tocam num ponto essencial do racismo “enrustido” de nossa formação societária. A possibilidade de tomar certas idéias comuns sobre as cores dos brasileiros de modo inofensivo, como gostariam aqueles que reagem  simplesmente ao "politicamente correto", cai por terra quando se tem em mente o que a carta destaca, que é o sentimento de uma criança em sala de aula ao ver retratada sua condição social com menos respeito, por menor que pareça. O respeito igual é um direito básico. Sobretudo na infância. Ele é apenas um ponto de partida para se poder então se formar pessoas aptas a enfrentar as  competições e disputas pela vida afora. Portanto, na escola não há como transigir quanto a esse direito. 

As lutas do dia a dia, as dificuldades econômicas já são tantas que não precisa trazer para o interior da escola outras discriminações, como as raciais. Escolas equipadas, conectadas, com professores de alta qualificação, coexistem com escolas sem infraestrutura, improváveis mesmo de se deixar existirem hoje. Buscar recuperar os danos que esses handicaps provocam na educação das crianças é tarefa suficientemente complicada e urgente. Portanto, a importância de as instituições  não abrirem mão do princípio do respeito e dignidade iguais. Não se trata, óbvio, de proibir determinados livros, mas de cuidar muito na escolha dos livros de leitura obrigatória na escola, conforme as faixas etárias, como de certo modo vem sendo feito pelo MEC. Além das quotas, das bolsas e de  outras medidas que consigam efetuar o  delicado balanço entre respeito à diferença e direito à igualdade social.

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