quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

DO CAIRO, LIÇÕES DE POLÍTICA E CULTURA

Enquanto prostestam contra uma ditadura que até bem pouco não aparecia assim a quem via de fora, pois era um governo "amigo" dos "ocidentais", os jovens egípcios estão reensinando algumas coisas sobre política e cultura.

Em primeiro lugar, uma lição muitas vezes repetida nas relações entre países. É a plasticidade do conceito de democracia e das instituições encarregadas de defendê-la. A lição é afirmada pela postura embaraçosa de governos de outros países em apoiar o clamor das ruas no Cairo e, ao mesmo tempo, assegurar a estabilidade da transição. Como dizem os analistas, do ponto de vista dos interesses americanos, europeus e israelenses, é preciso mudar sem mudar. Por conta dos protestos de hoje, o grande público toma consciência dos investimentos militares que têm sido feitos por anos a fio no Egito pelos EUA e de como o país tem a mão firme no bloqueio à Faixa de Gaza, sendo então ator fundamental no conflito de Israel com a Palestina. Nas relações internacionais que favorecem governos não só corruptos e autoritários, mas violentos, soa mal o emprego dos termos democracia e direitos humanos. As modernas declarações de direitos ficam pálidas quando episódios assim trazem à tona o que se faz em seu nome.

Em segundo lugar, os manifestantes iluminam o quanto de artificialidade há nas supostas barreiras entre culturas diferentes. Está claro que o argumento do mal menor de se manter um governo laico para evitar a ascensão do integrismo religioso não se sustenta no caso. Os jovens insatisfeitos no Cairo têm muito mais em comum com jovens desempregados e que se vêem sem perspectiva em muitos outros países, do que divergências culturais. Anseios de liberdade de escolha, liberdade política, justiça, auto-estima, emprego, oportunidades de realização de projetos pessoais e profissionais, um estado a serviço dos cidadãos... é isso que basicamente os move. O atendimento a esses anseios não requer negação de valores culturais. Requer medidas políticas e econômicas.

A lição de que há anseios universais que se exprimem naqueles protestos é muito evidente.  Portanto, há mais fatores de promoção de diálogo intercultural do que obstáculos. Mais uma vez se observa como diferenças culturais e religiosas podem ser manipuladas, exacerbadas, gerando preconceitos e intolerância, porque há interesses não declarados que precisam ser assegurados, sobretudo quando estão em jogo bens econômicos estratégicos.

O problema das diferenças culturais não se resume a manipulações, por certo. Porém, não se pode aceitar levemente a idéia de que tradições e culturas diferentes sejam fechadas a diálogo. E, portanto, tome repressão para evitar o pior, o terrorismo de base religiosa, usado como justificativa para fechar os olhos a barbáries locais. Não seríamos o que somos hoje, em nenhum lugar, se séculos e séculos de intercâmbios e de trocas culturais não nos tivessem precedido. Muito da "natureza" que nos cerca é fruto de trocas passadas. A esse respeito, vale a leitura do livro de Lévi-Strauss, Raça e História.

Quando sabemos pela imprensa que as forças integristas não lideram os movimentos, percebemos então mais essa lição que vem do Egito:  são vazios muitos discursos anti-imigração em países ricos que apelam para as diferenças culturais para justificar as dificuldades de integração; inclusive, as reclamações formuladas por governos nesses países de que os imigrantes trazem valores incompatíveis com os "valores nacionais". As bases para o diálogo é que são negadas, antes de as diferenças eclodirem em conflitos étnicos.

Quando eu estudava na França, durante a guerra contra o Iraque do primeiro governo Bush, ouvi de uma colega argelina, doutoranda em geologia, que ela sentia naquele momento uma vontade de usar o véu islâmico, que normalmente não usava, expressando assim um sentimento que misturava humilhação e desejo de afirmar o valor de sua cultura, motivada por aquela intervenção americana sobre um "país árabe", vista como ilegítima. Anos depois, na Austrália, minha filha adolescente teve como amiga na escola uma jovem afegã, de uma família muçulmana que aparentemente era seguidora rígida dos preceitos religiosos e que acabavam de obter o estatuto de refugiados no país. Pelas conversas que mantinham na escola, no MSN, vi como partilhavam desejos, preocupações, dúvidas comuns à idade.

Por tudo isso, são valiosas as lições que vêm do Cairo.

http://gazetaonline.globo.com/_conteudo/2011/02/764083-confrontos+deixam+3+mortos+e+mais+de+600+feridos+no+cairo+diz+governo.html

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