segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Esperanças pós-eleitorais: interessa uma mulher na presidência?

Boa parte dos observadores do período eleitoral levantaram expectativas de que uma mulher na presidência do país, pelo fato de ser uma mulher, abre perspectivas muito interessantes. De um lado, sublinham o valor simbólico de uma mulher à frente de um dos países de presença notável no mundo. Muitos exemplos são dados em apoio a essa visão, desde o número de mulheres presidentes ou primeiras ministras, que se conta nos dedos, até a reduzidíssima quota de mulheres em direção de empresas, organizações públicas e privadas, e não só no Brasil.

Uma das vozes nessa linha está no blog Política e Crônicas, da cientista política Luzia Álvares:

O Brasil está ainda impactado com a eleição de Dilma Rousseff, a primeira mulher a ocupar o cargo de Presidente da República. Não é para menos. Se há 78 anos o olhar espantado era para as “eleitoras”, ou seja, para as mulheres que haviam conquistado o direito de votar nos seus representantes políticos, havendo clara alusão de intelectuais e da mídia da época às “mulheres públicas”, combinando com a menção às prostitutas, o que dizer hoje da que ousou aceitar sua candidatura, lutou pela vitória e foi eleita para o mais alto cargo político do país? (Expectativas e frustrações, 12/11/2010)


Assim, trata-se de um passo cuja importância não pode ser menosprezada, mesmo por quem não foi eleitor de Dilma. Há, ademais, os que citam os números de violência de gênero no Brasil, inclusive as manifestações homofóbicas, que, em certa medida,visam grupos que quebram a normatização vigente de poder, ou de comportamentos de um modo geral. Finalmente, vale lembrar que um dos primeiros a cumprimentar Dilma eleita foi ninguém menos que o presidente do Irã, cuja legislação penal inclui punir uma mulher por meios que, para muitos, são impensáveis hoje. Enfim, há aqueles que, sem entrar nos conteúdos de propostas, partidos, compromissos etc. saúdam a alternância inédita entre os sexos no poder, por contribuir para configurar novos padrões sociais, sacudir preconceitos e padrões naturalizados. Por isso, saudou-se à esquerda como à direita, o início do primeiro pronunciamento da candidata, ainda na noite da eleição:

... meu primeiro compromisso: honrar as mulheres brasileiras, para que este fato, até hoje inédito, se transforme num evento natural. E que ele possa se repetir e se ampliar nas empresas, nas instituições civis, nas entidades representativas de toda nossa sociedade.
A igualdade de oportunidades para homens e mulheres é um principio essencial da democracia. Gostaria muito que os pais e mães de meninas olhassem hoje nos olhos delas, e lhes dissessem: SIM, a mulher pode!

Isso não é pouco!

Além desses aspectos simbólicos, muitos analistas propõem uma abordagem de gênero e discutem então que uma mulher traz uma competência especial para o executivo. Esse é um ângulo escorregadio. Pois, de imediato, parece basear-se na idéia de uma "essência" feminina, diversa da "masculina". E para se contrapor a isso, basta lembrar de tantas mulheres que não conseguem fazer diferença no campo político. Contudo, o argumento é mais complexo. Clique em "leia mais" para saber.





Diz respeito à experiência histórica e à fabricação da cultura subjacente à ordem social. A célebre frase de Simone de Beauvoir é sempre válida: não se nasce mulher, torna-se mulher. A separação dos campos de gênero, com as respectivas definições do que é próprio para cada um, é um dos pilares da ordem econômica e social dominante. A despeito das mudanças inegáveis, as "essências" (o que é próprio de homem, de mulher, de idosos, de jovens...) moldam as consciências ao que existe. E o que existe reflete relações de poder de classe e gênero. Por exemplo, as longas horas que tantas mães passam em filas à espera de atendimento médico para filhos, ou que são levadas a abandonar carreiras ou a aceitar ganhos reduzidos por trabalhos temporários ou precários, mas que lhes permitem acoplar o trabalho com o cuidar de pessoas da família, têm consequências na política e na economia. Tem consequências nas demandas por reconhecimento e por redistribuição de recursos (renda) da sociedade, para usar os termos da filósofa Nancy Fraser.

É útil considerar a perspectiva de gênero sobre a vida social, sobretudo agora que tanto se aponta para as armadilhas dos jogos de poder no Congresso, para o peso dos acordos políticos e, principalmente, para o fato de que a candidata eleita é fabricada, sem personalidade própria. Para todo lado, vêem-se sinais de uma "tragédia anunciada", de que o governo "não vai dar certo". Assim, o que dizem analistas que acreditam que interessa uma mulher na presidência?

Leonardo Boff escreveu um texto esclarecedor, chamado Duas mulheres - duas abolições?, publicado em http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=52480.  Embora pareça uma leitura essencialista de uma natureza da mulher, ele argumenta para a natureza das instituições. Aponta para a complexidade da vida pública e, ao mesmo tempo, para o quanto a ditadura de certos padrões de comportamento, de produção e de governo empobrece o conhecimento e a capacidade de intervenção para solucionar problemas. Por isso, saúda o fato de que as mulheres ao participarem da vida pública, trazem consigo experiências diferenciadas, pessoais e coletivas, potencialmente enriquecedoras da política, posto que mais abertas à complexidade da vida cotidiana, dos anseios e expectativas das pessoas.


O androcentrismo se caracteriza por estabelecer como padrão para todos; as formas de pensamento e de ação características dos homens. Eles são o sol e os demais, como as mulheres ou outras culturas, seus satélites e meros coadjuvantes.
O patriarcado e o androcentrismo subjazem às principais instituições das sociedades atuais com as tensões e os conflitos que provocam. A eles se deve o surgimento do Estado, das leis, da burocracia, da divisão de trabalho, do tipo de ciência e tecnologia imperantes, dos exércitos e da guerra. As feministas do Terceiro Mundo viram além da dominação cultural, também a dominação social das mulheres, feitas pobres e oprimidas pelos donos do poder. O ecofeminismo denunciou a devastação da Terra levada a efeito por um tipo de tecnociência masculina e masculizante, já antes percebida pelo filósofo da ciência Gaston Bachelard, pois a relação não é de diálogo e de respeito, mas de dominação e de exploração até a exaustão. (L.Boff)


Do ponto de vista de uma consciência ecológica mais desenvolvida, a mulher na política também interessa:

As mulheres nos ajudaram a ver que realidade humana não é feita apenas de razão, eficiência, competição, materialidade, concentração de poder e de exterioridade. Nela há afeto, gratuidade, cuidado, cooperação, interioridade, poder como serviço e espiritualidade. Tais valores são comuns a todos os humanos, mas as mulheres são as que mais claramente os vivem. O ser-mulher é uma forma de estar no mundo, de sentir diferentemente o amor, de relacionar corpo e mente, de captar totalidades, de pensar não só com a cabeça mas com todo o ser e de ver as partes como pertencentes a um Todo. Tudo isso permitiu que a experiência humana fosse mais completa e inclusiva e abrisse um rumo de superação da guerra dos sexos.
Hoje, devido à crise que assola a Terra e a biosfera, pondo em risco o futuro do destino humano, estes valores se mostram urgentes, pois neles está a chave principal da superação.
(L. Boff)

E lembra ainda a Princesa Izabel na abolição:

Na nossa história tivemos uma mulher, considerada a Redentora: a princesa Isabel (1846-1921). Substituindo o pai Dom Pedro II em viagem à Europa, num gesto bem feminino, proclamou em 28 de setembro de 1871 a Lei do Ventre Livre. Os filhos e filhas de escravos já não seriam mais escravos. Financiava com seu dinheiro sua alforria, protegia fugitivos e montava esquemas de fuga para eles. Numa outra ausência do pai, a 13 de maio de 1888, fez aprovar pelo Parlamento a Lei Áurea da abolição da escravatura. A um de seus críticos que lhe gritou: "Vossa Alteza liberou uma raça mas perdeu o trono", retrucou: "Mil tronos eu tivesse, mil tronos eu daria para libertar os escravos do Brasil". Queria indenizar os ex-escravos com recursos do Banco Mauá. Preconizava a reforma agrária e sufrágio político das mulheres. Foi a primeira abolição. (L. Boff)

Se o governo da primeira mulher na presidência do Brasil vai dar certo ou não? De todo modo, alguns indícios são bem interessantes. Jornalistas reconhecem que ela está priorizando a formulação de programas mais do que nomes ministeriais.

Assim disse Marcos Coimbra, no artigo Vida normal em Brasília, http://www.advivo.com.br/blog/luisnassif/a-mudanca-de-guarda-em-brasilia-segundo-coimbra#more, em 21/11/2010:

Parece que Dilma será uma presidente diferente. Agora mesmo, na hora em que seus antecessores dedicavam a maior parte do tempo a conversações a respeito de nomes para integrar o governo, ela prefere se concentrar na discussão de programas. Em vez de tratar as promessas de campanha como águas passadas, tem cobrado dos assessores projetos que assegurem que sejam cumpridas.

Observação semelhante fez a jornalista Maria Inês Nassif no texto que reproduzi aqui alguns dias atrás.

Que lufada de ar na política!

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