sábado, 11 de agosto de 2012

Flint se foi!

Estava eu em Bragança dia 7 de agosto, de manhã cedo, fechando uma conta de hotel, quando minha filha me ligou, chorando, informando que nosso gato siamês, marrom, relativamente grande, o Flint, de doze anos, amanheceu morto. Recebi a notícia através daquele choro tão sentido, tão doído, como um pequeno choque, estranho, incômodo, uma sensação de 'sai prá lá!'. Incompreensível. Não podia ser! Lembrava apenas que ainda na véspera, quando eu saía do banho para me vestir, fechar a mala e tomar o carro que iria de Belém a Bragança onde participaria de duas defesas de Mestrado, eu quase tropeçara no gato postado à porta do banheiro. Essa mania do Flint de se postar impávido perto da gente em diferentes situações, quase que provocando um tropeção porque sua presença silenciosa não era facil de notar (o que mais de uma vez me fez pensar que gatos são um perigo para pessoas idosas, pelo risco de queda...), era um traço especial de sua personalidade de siamês, meio arisco e, ao mesmo tempo, meio chegado, meio ronronador ao toque, que de vez em quando dava uma canja de se deixar acariciar ao colo durante minutos a fio, enquanto ele queria. 

Flint guardava a característica que muitos admiram nos felinos, isto é, a autonomia, o oposto da subserviência canina ao dono, em prol de quem a própria personalidade é anulada para se tornar a verdadeira sombra do dono, seu sempre alerta amigo e seguidor. Flint não, para minha contrariedade. Gato, siamês, de improvável gênio amigável, Flint era próximo e distante ao mesmo tempo. Mas, seu porte altivo, seu silêncio, assim como sua necessidade de aconchego, só de vez em quando, tornavam-no próximo e apreciador do contato. Assim, era um felino especial (como, aliás, todos os bichos de estimação devem ser aos olhos dos donos, o que não invalida a doce ilusão de se ter um bichano realmente único). Pois assim era o Flint, que tinha por companheira sua filha Laila, fruto de um enlace rápido antes da castração há cerca de dez anos, feita para por fim ao insuportável processo de marcação de território ao qual ele se dava com grande frequencia  em nosso apartamento, ainda bem jovenzinho. Da primeira e única relação sexual nasceu Laila - na casa de Menina, a parceira de Flint antes da operação. 


Como um atípico gato paraense, dormia horas por dia em uma rede (na verdade uma rede tamanho de boneca, adaptada em um bebê conforto de proporções adaptadas ao corpo de um bebê de alguns meses).  E nessa redinha, muito bem aproveitada, Flint se foi, vítima de uma morte súbita. Ao escutar a notícia de minha filha, o sentido de confusão em minha mente - uma vez que
até onde se sabia ele gozava saúde. Uma única certeza ia se impondo a cada minuto que me separava daquele telefonena: era inelutável. 

Pela primeira vez senti a morte de um bicho de estimação. Na verdade, eu tive muito poucos bichos "para chamar de meus".  Passei toda a infância pedindo a meus pais um bichinho de estimação. Não consegui como eu queria, um "verdadeiro" amiguinho, que eu, dos meus 8 aos 14 anos,  achava que teria sempre prazer em levar para passear, cuidar e, sobretudo, acariciar e receber as manifestações de afeto. A gente morava em apartamento e me fora sempre explicado que apartamento não suportava cães ou gatos. E eu queria mesmo um cãozinho, em uma época em que eu me achava uma menina solitária. Meus pais tentaram várias vezes suprir esse desejo com passarinhos - lembro de um canário quase cor de cenoura, para quem nós compramos um "disco" organizado para estimular o canto , lá pelos inícios dos anos 1970. E de um pequeno jabuti, o Jatobá. E de duas rolinhas que apreceram no nosso jardim, novinhas, talvez devido a uma queda em seu primeiro vôo, e que eu, com devida assistência, pude curtir graças a um providencial "corte das penas das asas e da cauda" e a uma caixa de sapatos à qual fora adaptado um poleiro, onde elas habitaram durante as poucas semanas em que permaneceram conosco. Todos esses pequenos companheiros não substituíram meu desejo de um verdadeiro animal de estimação, um mamífero, que reagiria a manifestações de afeto e que estabeleceria comigo uma efetiva interação. 

Flint chegou-me muito depois, por pedido da filha, já que acabáramos de perder um outro gato, Flint 2, que caíra da janela do apartamento de minha sogra. As filhas curtiram-no mais do que eu, sempre às voltas com os compromissos laborais. No entanto, todos aproveitamos bons momentos com esse companheirinho de percurso. Estou hoje sentindo junto com as filhas essa pequena falta do felino, sua presença silenciosa, quase uma presença ausente, mas uma presença acima de tudo.

A partida do Flint traz à lembrança o sentimento de que tudo passa. Tempos, pessoas, relações, situações, tudo se vai. A duração é o que importa, é o que nos cabe reter do fluxo continuado em que vivemos. Esta semana sem o Flint chega ao fim, relativamente tranquila. A lembrança vai se diluindo, o costume com a ausência impõe-se, pesado. Provavelmente em breve esse costume vai se sobrepor e suplantar a lembrança. Salve Flint! Foi um privilégio conviver com esse gato dormidor em rede, como um autêntico paraense!

 

6 comentários:

  1. Tão linda homenagem. A saudade do Flint está presente por todos os cantos da casa. Saudade que doi. Mas, felizmente, essa dor vai dando lugar a boas lembranças e bons momentos vividos ao lado do amigo felino. Flint foi uma parte singular da família, nunca iremos esquecê-lo.

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  2. Flint, eu sinto muito saudades de você. Obrigada por ficar ao meu lado quando eu estava triste. Choro toda noite de saudade de você,porque você significou muito para mim. Sem você,falta alguma coisa no meu coração. Eu te amo muito.
    Amanda Macambira

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  3. Linda declaração de amor. É assim mesmo, somos finitos, mas permanecemos vivos enquanto estivermos presentes na memória daqueles que nos amam.
    Que bom que você voltou!

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  4. Esse sentimento por um animal nos faz maiores diante do mundo que a cada dia se torna pequeno nesse afeto. Tive três cães dois pequeneses e um llasa apso - Renan, Dominique e Bolota - que aos poucos foram nos deixando e a casa, vazia. A ponto de suas ausências marcarem com a presença de ladrões, mesmo não sendo eles de raças de guarda. Sofri muito e ainda tenho suas fotos e , no coração, a saudade de um tempo em que eles faziam a festa.
    Sei muito bem, Cristina e família, como estão sofrendo a passagem do Flint. Minha presença por aqui é para compartilhar esse momento que muitas pessoas não entendem. Beijos.

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