quinta-feira, 16 de agosto de 2012

Gabriela, a moral de outrora e um gosto musical hoje

A minissérie Gabriela - pena que vá ao ar tão tarde da noite! - evoca costumes e idéias ainda próximas de nós. Valores que ainda atormentaram a geração das avós de hoje, muitas que ainda tiveram que enterrar o desejo de estudar e trabalhar em prol do casamento e do cuidado com os filhos, seus ou das irmãs mais velhas. Certo que elas não mais viveram o tempo da trama, quando o direito costumeiro admitia a morte da esposa adúltera pelo marido em nome da honra, como no triste fim da Dona Sinhazinha e seu amante. Mas "a sociedade", como diz Gabriela, pesava desproporcionalmente sobre a mulher "de posição". E que, afinal, prendia a todos naquele enredo pesado. 

 

A novela também evoca idéias que ainda tinham  trânsito nas infâncias das meninas dos anos 1960. É o caso da preocupação com a virgindade antes do casamento e do medo de ter a reputação queimada por comportamento execessivamente permissivo no plano sexual. Pouco tempo depois esses valores patriarcais seriam sacudidos a fundo pelos movimentos de contracultura, pelos feminismos, pelas revoluções sexuais e pelos avanços tecnológicos no campo da reprodução. 

 

Desse modo, pode-se também curtir Gabriela como um repertório de tradições superadas, hoje quase um folclore, a exemplo do papel de guardiãs morais que algumas mulheres exerciam, juízes mais implacáveis da moralidade de outras mulheres do que os próprios magistrados oficiais. Quase incompreensível aos olhos de hoje. 

 

E, no entanto, eis que um dia destes, em Mosqueiro, no mês de julho, ouço uma música em um restaurante à beira-mar, com o seguinte refrão: Todo bebo é bonequeiro, Todo baixinho é valente, Mulher boa é a dos outros, E a ruim é a da gente (2x)

 

Como é que nós, do sexo feminino, curtimos um negócio desses? E faz um sucesso danado entre os apreciadores do gênero! Parece, então, uma mostra da velha história do dominado que compactua com a dominação, que concorda com a própria subalternidade que a cultura autoriza. É certo que a gente hoje pode classificar esse gosto musical na categoria do politicamente incorreto. Mas e daí? No fundo, Dona Dorotéia, o bastião de Ilhéus, não é só folclore. Se mulheres cantam com o coração leve a letra "mulher boa é a dos outros", fica menos estranho o comportamento vigilante daquelas senhoras de outrora. Elas e nós, lá no fundo, concordamos com as classificações do mundo.

 

Desse modo, assistir Gabriela também é uma oportunidade para refletir sobre o que é cultura, esse todo simbólico que muda e permanece, seja ontem, seja hoje. Por um lado, somos todos suportes da cultura, dessa superestrutura que nos domina mas que nos faz, também, agentes de sua manutenção. Esses padrões coletivos só se mantêm com nossa ajuda. Mas, de outro lado, a cultura é dinâmica, é multifacetada, assim como são multifacetados o ritmo e as formas da mudança. Gabriela também mostra, justamente, as fissuras no todo, os muitos germes da mudança naquela sociedade quase fechada de que tratou Jorge Amado.


Parte da letra da música Todo bebo é bonequeiro, extraída do sítio http://www.letras.com.br/avioes-do-forro/todo-bebo-e-bonequeiro.

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