terça-feira, 11 de janeiro de 2011

EM BUSCA DO OURO

O impulso para ganhar dinheiro, a auri sacra fames sobre a qual se referiu Max Weber no seu livro sobre a ética protestante e o capitalismo, motivou e ainda motiva corridas por ouro e pedras preciosas em diversos lugares no planeta. Páginas expressivas da colonização européia no Novo Mundo, como ocorreu no Brasil e na Austrália, foram vividas por pessoas que se aventuravam em busca de um Eldorado. Essas duas experiências tiveram traços em comum, embora correspondessem a sistemas sociais muito diferentes. Em um caso, tratava-se de uma"colônia de exploração" e, no outro, de uma "colônia de povoamento", segundo a terminologia consagrada pela pesquisa histórica. As diferenças ressaltam no uso de escravos, trabalhadores livres ou remunerados como modalidade principal de trabalho, no grau de controle da produção pela metrópole e na aplicação dos ganhos obtidos então. Em comum, além de violência, racismo e exploração, é notável que a busca pelo ouro em ambos os contextos esteve na origem de movimentos de libertação do jugo colonial. Ela ajudou, portanto, a forjar sonhos locais de autonomia, aproximando de certo modo essas realidades distantes e "atrasadas", dos processos sociais em curso na Europa ocidental e nos EUA nos séculos XVIII e XIX.

No Brasil, a Inconfidência Mineira foi precedida de várias tentativas de fugir às taxações e controles, notadamente às "derramas" instituídas obrigatoriamente pelo governo para compensar os fracos recolhimentos de impostos sobre o ouro.

http://archive.amol.org.au/eureka/gallery2/001.htm
Na Austrália, no Estado de Victoria, a Rebelião de Eureka em 1854 (Eureka Stockade), foi um levante dos garimpeiros nas minas de Ballarat contra a imposição de licenças para garimpar, a serem pagas independentemente dos resultados em ouro, penalizando sobretudo os de menos sorte. Assim como se considera a Inconfidência um marco na independência no Brasil, na Austrália considera-se aquele movimento um marco no desenvolvimento da democracia e da identidade do país. Os garimpeiros revoltosos na Austrália formaram um movimento de reforma política chamado Ballarat Reform League, com bandeira própria inspirada no Cruzeiro do Sul. Tiveram entre seus líderes homens que haviam atuado no movimento cartista na Inglaterra e em outros movimentos libertários de trabalhadores na Europa nos anos de 1840. Resultaram da Rebelião de Eureka, a reforma das leis reguladoras da mineração e o direito de os garimpeiros votarem para o legislativo local. Neste ponto, portanto, uma radical diferença em relação à resposta estatal à Inconfidência cerca de sessenta anos antes em Minas Gerais.

Hoje, próximo à cidade de Melbourne, o turista pode  visitar uma localidade insteiramente reconstruída segundo o que seria a vila mineradora de Ballarat daquela época e, também, experimentar a apuração do ouro na batéia. O conjunto lembra uma povoação do faroeste americano retratada nos muitos filmes do gênero. Assiste-se, ainda, a uma impressionante representação em som e luz da Rebelião. Aliás, representações de acontecimentos ou de processos históricos desse tipo fazem falta no Brasil. Elas poderiam ser feitas junto a monumentos históricos; em Belém, por exemplo, nos muros do Forte do Castelo, nas ruínas do Engenho Murucutú, ou em partes das Igrejas setecentistas projetadas por Antonio Landi.
Uma visita a Ouro Preto, linda cidade pelo patrimônio arquitetônico super bem preservado, classificado patrimônio cultural da humanidade e, também, por suas paisagens montanhosas, hoje bastante ocupadas, propicia uma rara sensação de mergulhar na história colonial brasileira e na origem do Estado das Minas Gerais, no interior de um Brasil que no século XVIII adentrara para bem além da zona costeira. Os edifícios e as igrejas imponentes no alto de suas ladeiras, exprimem parte da riqueza gerada na época pela extração do ouro. Este ouro, bem se conhece, foi em sua maior parte (dados oficiais) para Portugal e, de lá, seguiu também para a Inglaterra, onde deu sua contribuição no financiamento da Revolução Industrial. Testemunho do tributo dos escravos à modernidade capitalista emergente!

A senzala guardada nos porões da Casa dos Contos e duas minas abertas à visitação - uma movida a trabalho manual de escravos até sua desativação e a outra com escravos apenas nas duas primeiras décadas e, depois, por mineiros assalariados e uso crescente de maquinário até a década de 1980 - lembram as bases da sociedade que se erigiu dessas fontes. Impressionantes e sombrios caminhos, agora muito limpos, a evocar vozes passadas, andares, carregares, suores, obrigações, vigilância e, não raro, pressas para escapar ao oxigênio perigosamente rarefeito nas condições de iluminação e ventilação vigentes, sobretudo nas estreitas galerias da mina operada manualmente. Sem imagens da época, pode-se apenas imaginar o que se passou nessas minas.

Os guias locais, bem informados e atenciosos, falam das muitas estratégias que foram utilizadas para se evadir do pagamento dos impostos à Coroa, a quinta parte do ouro extraído (donde a expressão "quinto dos infernos"). Repete-se, então, que "a corrupção no Brasil vem desde essa época". O comentário soa bizarro ao turista, certo e errado ao mesmo tempo, enganador mais do que esclarecedor. O que era certo na razão de Estado da época, na ordem jurídica correspondente, era injusto sob tantos outros pontos de vista, e isso em nada justifica moralmente a corrupção entre nós, na República do século XXI. A idéia denota perigosamente a naturalização desse comportamento, naturalização que ajuda a mantê-lo. Seria talvez preferível pensar que se trata de uma das heranças do sistema colonial, de um preço decorrente desse "começo" de nação tão conturbado e insidioso nas suas metamorfoses e evolução.

A visita ensina sobre a história do trabalho no Brasil. Assim, vê-se que dentre as peças técnicas expostas nos museus, a quantidade de instrumentos de repressão - algemas, coleiras, correntes, troncos, chicotes, palmatórias ... - parece suplantar a de instrumentos agrícolas, teares, boticões de dentista, urinóis e escarradeiras.  

Aprende-se, ademais, a fonte de expressões linguísticas correntes, ligadas ao trabalhar naquele contexto. Além do quinto dos infernos, o "fazer nas coxas" que associamos a algo apressado e, portanto, mal feito, teria como origem a moldagem das telhas pelo escravo sobre suas coxas, resultando em telhas de diferentes padrões. Há, também, as expressões que soam mais alegres, que remontam a antigas práticas de resistência. O "santo do pau oco" é bem conhecido.  Menos conhecida é a origem do "lavar a égua", isto é, sair-se bem em um evento, atividade ou jogo; ela vem da antiga prática de esconder parte do ouro em pó, no pelo de éguas que, depois, eram lavadas para se recuperar clandestinamente o ouro.

No plano da arte sacra, riquíssima na cidade, resssaltam as muitas igrejas setecentistas, cujo valor histórico, artístico e cultural é inquestionável. Elas são apontadas como representações das mais significativas do barroco colonial e do rococó. A beleza, como disse uma vez um comentarista, é sempre uma beleza triste. Ao olhar para aqueles incontáveis santos, oratórios, crucifixos, cetros, ostensórios, peças e adereços usados em procissões, indaga-se sobre o propósito para os homens e as mulheres da época, daquelas ações de devoção tão frequentes, tão ostensivas, de toda a vida aparentemente regulada pelas relações religiosas naquele contexto de extrativismo pleno de acasos e perigos, além da repressão. O mobiliário das residências das elites, aparece muito austero pelos padrões de hoje. 

As igrejas também traduzem um aspecto de enorme significação da vida social de então: as irmandades religiosas, que bancaram cada uma a construção de sua igreja, incluindo irmandades de escravos. Propiciavam, ainda, uma espécie de previdência mutualista. A Igreja de Santa Efigênia foi de uma irmandade de escravos. Dela se diz que foi construída graças ao lendário líder Chico Rei, de nome original Galanga, que teria sido um nobre africano que não se reduziu à escravidão. Trabalhou em uma mina que depois comprou e, então, comprou a libertação de muitos de sua tribo de origem. As ruínas do que teria sido sua residência jazem mal conservadas próximo a uma das minas, na rua Chico Rei. 

A construção da Igreja de Santa Efigênia foi supervisionada pelo pai do Mestre Aleijadinho, este último a figura maior na escultura religiosa no Brasil daquele período, filho de uma escrava. Ele contou com a atenção do pai para florescer no campo das artes. Nas muitas esculturas de sua autoria nas igrejas de Ouro Preto e na cidade de Congonhas, aparecem sinais de rebeldia e crítica ao sistema colonial: marca de enforcamento nas figuras de Jesus, ou botas de soldados portugueses nos soldados romanos representados nas cenas da Paixão de Cristo. Seu pai teve de negociar com os membros da irmandade da Igreja da Conceição, cuja construção ele mesmo dirigiu e ornou, para que o filho Antônio Francisco Lisboa (Aleijadinho), pudesse ser lá batizado. Ela, como as demais irmandades de brancos, não admitia negros nos seus cultos. Mas a ameaça de deixar inconcluso um trabalho realmente insubstituível, abriu uma brecha naquela regra da ordem estamental e o menino foi batizado aos seis anos de idade.

A riqueza material decorrente do ouro, ainda que expatriada em maior proporção, também se expressou no florescimento cultural entre os membros da elite, como indicam, por exemplo, as produções literárias de Tomás Antônio Gonzaga e seu drama amoroso com Maria Dorotéia - A Marília de Dirceu -  e da poetisa Bárbara Eliodora, esposa de um dos inconfidentes. Os participantes do movimento da Inconfidência eram em grande parte militares graduados e profissionais qualificados, além de artesãos. A produção artística refletiu de diferentes modos, não linerares, anseios de liberdade e autonomia, além de abrigar exercícios de  crítica social.

Lembrou-nos o guia, que a posição da estátua de Tiradentes no meio da praça principal, no local onde sua cabeça foi exposta, dá as costas a um prédio que foi a residência oficial do governador, ou seja, a um símbolo do poder colonial. 

Os monumentos daquela região aurífera estão a indicar as muitas dimensões sociais e humanas das chamadas corridas pelo ouro, que importa conhecer e refletir. 

Seria fantástico se as escolas brasileiras, inclusive as públicas, abrissem  em sua programação visitas a regiões históricas do país.

2 comentários:

  1. Cristina,
    Uma aula de história. Eu sempre quis fazer esse passeio e agora, com sua descrição, irei, com certeza.
    Beijinhos

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  2. A propósito das comparações entre Brasil e Austrália: Nestes dias de imagens fortes sobre as enchentes no sudeste, sobretudo na região serrana do Rio de Janeiro, o site Carta Maior publica um comentário sobre as diferenças entre as atitudes perante as chuvas torrenciais que atingem os dois países, chamando a atenção para o quanto a falta de responsabilidade pública pesou nos resultados diferentes. Na Austrália, em que cidades importantes encontram-se submersas, houve evacuação das populações e um número de vítimas "residual" (http://www.cartamaior.com.br/templates/index.cfm).

    É claro que a magnitude das populações envolvidas é incomparável, mas a ausência ou insuficiência de política de prevenção não se explica só pelas magnitudes. Ao mesmo tempo, pululam informações na mídia de que nem todas as verbas de prevenção no Brasil foram utilizadas, que parte das verbas foram repassadas a fundações... E, também, discussões sobre a falta de reforma urbana nas cidades brasileiras.

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