terça-feira, 18 de janeiro de 2011

PRECONCEITOS... E OS DIREITOS NA CORDA BAMBA

A primeira vez que ouvi sobre o "caso Dreyfus", foi no decorrer do meu curso de graduação em Ciências Sociais. Aprendi, então, que esse foi um evento marcante do contexto em que a Sociologia como ciência se consolidou na França, na virada do século XIX para o XX. Vivia-se um período que pode ser considerado como de consolidação da modernidade na Europa, expresso nos processos de industrialização e de urbanização crescentes, na  constituição do Estado laico e na emergência da primeira geração dos direitos sociais. A ciência da sociedade tanto resultava desses processos de mudança quanto deveria ser um apoio na conformação da nova ordem social, ao elucidar os problemas  decorrentes da divisão do trabalho, do individualismo, das lutas de classe, do novo espírito científico e do tradicionalismo etc.

No entanto, mais do que um elemento naquele contexto, um olhar mais próximo sobre o drama pessoal e humano de um capitão judeu condenado injustamente traz à tona questões atuais sobre a força dos preconceitos e sobre como, especialmente em contextos de crise social, preconceitos podem legitimar transgressões das leis em nome de "interesses maiores", que justificam passar por cima de indivíduos em favor da coletividade. Ainda mais, se os indivíduos em questão são membros de categorias sociais menos valorizadas, subalternas, que carecem de igual reconhecimento. Seus dramas podem, assim, ser menos sentidos pelos demais membros do corpo social, ideologicamente aliviados da culpa pelas injustiças eventualmente cometidas em nome de um "bem maior". 

Esta reflexão vem a propósito do livro recente de Louis Begley, O Caso Dreyfus - Ilha do Diabo, Guantánamo e o pesadelo da História. Ele nos aproxima dos muitos personagens daquele drama, e dos desafios que viveram. Portanto, para além da importância histórica do evento. Ademais, ao levantar paralelos com os processos dos prisioneiros na base americana de Guantánamo pós 11 de setembro, ele aponta para a permanência de atitudes que põem em risco as democracias e seus sistemas jurídicos.

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O "caso" refere-se a uma enorme injustiça de que foi vítima um capitão do exército francês, Alfred Dreyfus. Em 1894, ele foi acusado pela corte marcial da França, de vender segredos militares ao governo alemão. O momento era delicado. Houvera a derrota da França na guerra contra a Alemanha e a anexação da parte do território francês que corresponde às regiões da Alsácia e da Lorena. Duas décadas antes, a Comuna de Paris. Não por acaso, Dreyfus era um oficial judeu quando o antisemitismo era corrente entre os militares e, igualmente, uma matéria sensível na sociedade. O antisemitismo era fator de divisão política entre, de um lado, republicanos progressistas, envolvidos na consolidação da Terceira República laica, democrática, herdeira da tradição da cidadania e dos direitos humanos. De outro lado, políticos conservadores, nacionalistas, saudosistas da monarquia, enfim, grupos mais à direita no espectro político, representavam uma tendência forte na sociedade, o etnocentrismo. Portanto, evidenciava-se a difícil incorporação da idéia de um Estado defensor de uma cidadania amplidada, indiferente às crenças religiosas e pertencimentos étnicos, mesmo na terra da Revolução de 1789.

Assim, em 1894, constatado o fato da venda de segredos militares, as autoridades partiram à procura de um culpado. Oficiais ávidos por mostrar serviço fizeram recair sobre o capitão a culpa com base em provas muito frágeis e, a seguir, em reiteradas ilegalidades na condução do processo por parte das maiores autoridades militares, a exemplo da apresentação de provas secretas sem que o réu e seu advogado tivessem conhecimento. E, também, a não consideração da ausência de motivos para o crime, uma vez que o militar era homem rico, de folha corrida exemplar. Como resultado, ao cabo de um processo rápido e em grande parte secreto, ele passou cinco anos em solitária na ilha do Diabo, ao largo da Guiana Francesa. Ele só foi inocentado e readmitido no exército francês em 1906, embora nunca totalmente justiçado pela desonra e punição.


De maneira clara ou inconsciente para os que forjaram a culpa e para os que acreditaram na culpa, indica o autor que a condição de judeu pesava na maneira como concebiam, ou melhor, preconcebiam a pessoa do capitão. À medida que as fragilidades das peças de acusação ficavam nítidas, ou poderiam ficar, os oficiais de alta patente envolvidos no início do processo precisavam forjar mais provas, para justificar a condenação rapidamente conseguida pela Corte Marcial. Em sequência, no esforço de defender a aura de legalidade e, assim, a respeitabilidade das autoridades militares e, por extensão, a respeitabilidade do próprio Exército, difundiu-se um sentimento chamado pelos estudiosos do tema de antidreyfusismo, ao qual se associaram interesses políticos diversos.

Em especial, colocar em questão uma decisão da mais alta corte de justiça, notadamente em se tratando de um "estrangeiro", era para muitos impensável. O autor observou que, no decorrer dos anos, quando começava a ficar evidente o erro e as fraudes cometidas, houve quem preferisse a injustiça como mal menor diante do perigo de expor as pessoas e as instituições que representavam. Esse sentimento foi expresso no título de um capítulo do livro: "Que lhe importa se esse judeu apodrecer na ilha do Diabo?", frase de um general dita a um subordinado que teimava em pedir o reexame do caso. 

Tratava-se não apenas do convencimento da culpa, mas também de defender os interesses nacionais, as instituições e a boa sociedade. Esses elementos, inclusive, pesaram em decisões de governo e em tribunais posteriores que ratificaram a primeira condenação. 
Em defesa do prisioneiro, graças ao esforço hercúleo de um irmão e da esposa do preso, construiu-se pouco a pouco uma rede de adesões à causa da revisão do processo e da absolvição, da qual participaram escritores do porte de Emile Zola - que chegou a ser condenado por essa posição, assim como outros dreyfusistas tão ou menos notórios - e políticos como o socialista Jean Jaurés. Formou-se um grande movimento pró Dreyfus, ao mesmo tempo em que as reações contrárias também cresciam. Os debates chegaram à grande imprensa. Na passagem do século, a divisão entre dreyfusistas e antidreyfusistas esteve acirrada.

Mas o autor faz notar que, afinal, a absolvição do réu deu-se sem grande barulho, sem grande repercussão. O processo judicial que finalmente se conseguiu instaurar para a absolvição arrastou-se por três longos anos, somente a partir de 1903. Além disso, relativamente discreta foi a compensação ao capitão, reintegrado praticamente na mesma patente que ocupava ao ser condenado, sem considerar o tempo de seu afastamento. Ao leitor fica a impressão de que a reparação não foi à altura do dano imputado, do seu sofrimento.

O autor relaciona esse processo às prisões ilegais de suspeitos em Guantánamo, acusados de terrorismo, para perguntar: quantos Dreyfus haveria entre eles? E, assim, ele destaca a fragilidade dos valores democráticos, já que direitos humanos que se supõe adquiridos podem ser postos de lado sem grandes resistências, em momentos de crise. Preconceitos sociais ou étnicos não explicitados, déficits de reconhecimento, estão aí para aliviar as culpas. Alguns humanos parecem ser menos humanos que outros e podem suportar o tranco. Eis o que motivou o autor a retomar o "caso Dreyfus" depois de cem anos.

Nestes dias, acompanhando ao longe a formação de uma jovem estudante de Direito, tive contato com o livro de Rudolf Von Ihering, chamado A Luta pelo Direito. Ele trata o Direito como uma conquista dos povos, fruto de suas lutas, daí o apego dos povos a esse patrimônio de sua civilização. Aborda assim, positivamente, as leis como asseguradoras de direitos. Em tal ótica, situações como essas em que se silencia ou se dobra à influência dos preconceitos sobre as leis e seus princípios de igualdade, significam que se abre mão dessas conquistas. Mesmo quando os mais atingidos sejam de outra nacionalidade, de outra cultura, de outra classe social, elas estão a indicar como os direitos são frágeis. E, conforme o caso, isso parece não incomodar muito. 


Penso que o problema não se limita a situações excepcionais, como as de crise, ou a minorias. Mais próximos do nosso cotidiano, os reclamos que muita gente faz de que "a justiça é mais ágil para uns que para outros", apontam para a mesma ordem de fenômenos. Situações mais prosaicas, como o simples acesso a uma conta em banco, que faz com que a mesma quantidade de dinheiro renda mais para quem é correntista do que para quem não é, porque não pode, testemunham nossa tolerância comum à desigualdade no usufruto dos direitos.  

Assim, há pontos de conexão entre casos de suspensão ou relativização de direitos referentes a determinados grupos ou categorias bem demarcados e as desigualdades duradouras que, em muitas sociedades, excluem pessoas de condições ou benefícios assegurados em lei. Em uma cidade sujeita a alagamentos, como Belém, muitos moradores para irem ao trabalho, à escola, ou ao cinema, têm de tirar os sapatos e enfrentar as poças e a lama. Sendo "pagadores de impostos" - aceito como um passaporte para o direito de exigir serviços públicos - eles vivem dia a dia a suspensão de tal direito.

Expressões como "racismo ambiental", ou "sub-cidadania" (esta última empregada pelo autor Jessé Souza), usadas no contexto brasileiro hoje, ilustram atitudes similares que contribuem a manter a ordem social com suas contradições. E, portanto, continuam a dizer sobre o caráter formal da igualdade jurídica e de sua fragilidade.


Um comentário:

  1. Parabéns pelo blog, vá em frente!
    Espero que retribua a minha visita!
    e torne-se minha seguidora como me tornei
    seu seguidor!
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    estou te esperando !
    muito obrigado!
    José Azevedo

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