domingo, 19 de dezembro de 2010

Um lance distante da cidade fraturada

Pela varanda do quarto vi ontem, sábado de tarde, ao longe, andando em uma das estreitas ruas com casas que ainda persistem no bairro do Umarizal, em Belém (Pará), uma pessoa que pensei ser um menino a brincar, pois vinha descalço, andando a passos largos, quase correndo como se apressado na brincadeira, segurando o que parecia um objeto antes muito usado em brincadeiras na rua, uma lata amarrada a um fio que pode ser puxada como se fosse um carrinho. A cena tinha algo de estranho, pois não é mais comum ver crianças brincando na rua nessa região da cidade. Quanto mais  a gente se afasta da Doca, menos pessoas tendem a estar nas ruas; as que estão são transeuntes passando rumo a seus compromissos ou lares. De todo modo, era uma cena muito simpática. Por instantes dava para se deixar levar por uma sensação gostosa: crianças despreocupadas usando o espaço da rua para brincar.

Mais próximo, contudo, a "normalidade" do urbano se manifestou. Era um um jovem, um mendigo  que costuma andar pelas redondezas falando só, pedindo um trocado aos passantes, com quem vez por outra cruzo nas minhas raras andanças. Ao chegar ao fim da quadra, ele dobrou na outra rua continuando seu passo apressado e, segundo meu olhar convencional e distante, um passo sem rumo definido. Pouco depois, ele foi ultrapassado por um carro com janelas fechadas. Era a cena cotidiana que se recompunha.

Esta cidade grande não é só de estranhos. A estranheza da vida na metrópole foi um aspecto que tantos analistas da vida urbana moderna em sua ascensão destacaram, notadamente Georg Simmel no início do século XX na Alemanha que então se urbanizava rapidamente. Mas, Belém é mais uma cidade fraturada e temerosa. A sociabilidade dos habitantes é contida em espaços apropriados, espaços comerciais sobretudo, que podem variar conforme o poder de compra e os laços sociais das pessoas. A  depender da área da cidade, a sociabilidade pode se dar na rua,  em formas soltas e espontâneas, mas para muitos, os riscos, ou a sensação de estar pouco a vontade, são seu preço.

Acho que a gente se acostuma com essa vida estranhada em uma cidade que ainda tem alguns ares provincianos, porque os tantos afazeres, os planos de futuro, para nós, para os filhos, instam a seguir em frente. Isto é, a gente adia pensar criticamente e tirar conclusões do tipo "assim não dá pra ficar". A gente administra essas incômodas constatações e mais os lamentos por assistir passivamente as mudanças nos espaços da cidade, nos edifícios que são cada vez mais altos, cada vez mais fechados sobre si, que investem na beleza de fachada, sobretudo agora com as luzes do Natal.

Não pude deixar de lembrar o antigo poema de Manuel Bandeira sobre um vulto que vira mexendo em um monte de lixo, parecendo um animal e que, ao chegar perto, percebeu tratar-se de uma pessoa.

O que vi é um clichê no nosso meio urbano. O direito à cidade é  um  privilégio. E a gente vai levando.




4 comentários:

  1. Gostei muito do seu post de hoje, a lá Simmel. Eu sempre digo que sou uma pessoa de alma absolutamente urbana. Não um urbanismo provinciano, mas aquele do individualimo e impessoalidade característicos da modernidade. Nesse meio, a pessoa some e creio que se sente mais livre para ser ela mesma.
    Lógico que há os inconvenientes, como em tudo na vida. A solidão é uma delas. Uma solidão em meio à multidão generalizada.
    Mesmo assim, esse jeito blasè tem lá o seu encanto.
    beijinhos e parabéns
    http://diariodeumamulherdespeitada.wordpress.com/2010/12/20/faz-a-fama-e-deita-te-na-cama/

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  2. Diário,
    Ainda bem que tem gente nessa cidade que também olha para os rostos das pessoas, os encantos abertos e escondidos, com ironia, sarcasmo, mas também graça.
    Beijinhos,

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  3. Doutora,

    Um feliz Natal para vc e para as futuras sociológas caseiras, kkkk
    beijinhos

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  4. Adorei esse post. Acho necessário se espantar com a naturalidade com que convivemos com a pobreza. Quantas vezes na porta da minha faculdade, onde os alunos, sempre bem vestidos e, em sua maioria, de famílias ricas, conversam, fumam e esperam seus pais ou motoristas são deparados com pessoas que não tem nem metade. Moradores de rua, vendedores ambulantes etc. Porém, isso é considerado normal. Tive a mesma experiência em escolas, cursos outros lugares que frequento. A grande maioria das pessoas olha a pobreza no rosto todos os dias mas não realmente a vê. Pelo menos é isso que acredito pois no meu curso de direito muitas vezes fui confrontada com opniões pertubadoras sobre os direitos humanos que propagam uma idéia de meritocracia tão enraizada em nossa cultura. Dentro da sala de aula é fácil pensar que todos têm seus direitos garantidos e não é necessário proteção especial para grupos excluidos da sociedade se ao sair para ir pra casa e entrar no carro com película e ar condicionado você não olhar para aquele menino que em vez de estar estudando está vendendo chicletes no sinal.

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