domingo, 26 de fevereiro de 2017

Amar o inimigo?





As escrituras das religiões, além de testemunhos de fé, são fontes de conhecimento. Mais certo dizer sabedorias. Fudadas na espiritualidade, exprimem nossas maiores capacidades de ser e de fazer. Mesmo quando a caminhada histórica da religião agregou tons de dogmatismo, as fontes guardam lições e iluminam respostas à vida. Aventuro-me há pouco a conhecer a tradição cristã. Aventuro-me apenas. Cheia de dúvidas e vacilações.
Nosso ocidentalismo é cioso em separar saberes, ciência é ciência, fé é fé. É como também dizemos: economia é economia, mercado é mercado, sociedade é sociedade. Mas a separação absoluta nos empobrece como sociedade e, mesmo, como espécie. Afinal, que mundo é esse que temos a liberdade de construir? A abstração entre ideal e real, embora tão antiga, resulta nas tantas dores que acompanham os passos das civilizações e das pessoas: violências, vidas desperdiçadas, destinos sem destino... 
Nossas melhores realizações, nossas firmezas - é frequente a palavra "rocha" em textos de fé! - têm origens semelhantes: as esperanças dos povos e os sentidos que deram à vida e ao futuro. Elas se expressam nas obras humanas mais duradouras, monumentos, artes, conhecimentos e sabedorias que homens e mulheres de todos os tempos levaram consigo nas grandes viagens e migrações que moldaram nossos habitats. Hoje sabemos que até algumas florestas, paisagens aparentemente "naturais" resultaram de usos passados, de manejos ancestrais que contribuíam para a composição atual. Como disse o Papa Francisco, somos todos migrantes, passageiros. Loucura qualquer pretensão de exclusividade e de superioridade.
Nas leituras de hoje da liturgia católica, está a conhecida passagem de Mateus (5, 38-48), com a proposta: amar o inimigo! Era um corte radical com a lógica prevalecente até então e, principalmente, que impera até hoje. Imagine-se se deixar inspirar por isso na resolução de um conflito internacional! No mesmo texto consta ainda: "o Pai faz nascer o sol sobre maus e bons e faz cair a chuva sobre justos e injustos". Como é possível? E os méritos? Que estranha lição essa de não fazer distinção, amar em primeiro lugar, pois Deus mesmo não distingue. Seria fácil, talvez, se o próprio Pai decidisse por nós! Beneficiasse só os bons. Mas não é assim. Nossa liberdade de escolha permanece até nesse plano. É um sinal de amor de Deus por nós, o de respeitar nossa liberdade? O amar, então, deve se manifestar em relações práticas, em atitudes, ou seja, em vida em conjunto, em projeto de sociedade que seja inclusiva, acolhedora... E o texto ainda conclui com outra frase famosa: "Sede perfeitos como o Pai celeste é perfeito!"
O espírito da mensagem não é para seres de outra galáxia. É para nós mesmos, construtores orgulhosos e soberbos de nações. O principal mandamento transmitido pelo Deus Encarnado, Jesus, foi o do amor. Não um amor abstrato, leis ou regras morais, mas sim qualidade das relações humanas. Se o primeiro mandamento de Deus era o do amor ao Pai, o segundo, colado ao primeiro, era o amor ao próximo, inclusive os inimigos! 
Essa lógica bebe da espiritualidade mais profunda e por certo está em diferentes religiões. Recusamos a priori de assumi-la, pois é demais! Amar o inimigo? Na mesma sequência de leituras, Paulo (1Cor 3,16-23) diz: a sabedoria deste mundo é insensatez diante de Deus. 
Ou seja, nessas mensagens não fica pedra sobre pedra, como disse Jesus. São convites fresquinhos, mais do que atuais. Em plena globalização, retomamos os muros, atualizamos conflitos armados, concentramos a renda e a dignidade, cortamos proteções. E nem lembramos que já bem antes, no AT, constavam as palavras de Deus a Moisés (também da leitura litúrgica deste domingo): "Não tenhas no coração ódio contra teu irmão (...). Amarás o teu próximo como a ti mesmo" (Lv 19, 1-2.17-18). É possível se inspirar nessas fontes? Em muitas passagens bíblicas constam reflexões diretamente indicadas a quem ocupa posições de poder. Convidam a abraçar a inspiração do Espírito Santo, que nos sopra essas verdades ao mesmo tempo estranhas, mas com tantas promessas de vida plena. Esse é um dos sentidos da Graça que temos. A vida e a liberdade de escolha não são frutos dessa Graça? Não atribuamos à vontade de Deus desgraças que são nossa responsabilidade! A palavra de ordem assim inspirada é a da solidariedade, da partilha e do acolhimento.

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