sábado, 20 de agosto de 2011

Liberdade individual e eutanásia

O argumento central em um debate ao qual assisti sobre eutanásia, do ponto de vista legal, era de que não cabia ao Estado proibir, inserindo-se assim em uma esfera na qual cabe respeitar a liberdade da pessoa em escolher uma morte que considera digna, diante de uma situação que se afigura sem saída, no caso de uma doença terminal. O impedimento legal anula essa faculdade humana de decidir. Simplesmente proíbe. Uma das interlocutoras no debate considerava que, desde mantidos todos os meios possíveis de amparo à pessoa em tal situação, principalmente apoio psicológico visando convencê-la na direção de manter a vida, sua decisão de não prosseguir em uma batalha que vê como perdida, deveria ser respeitada. Lembrava a debatedora o caráter especialíssimo de uma tal decisão, contrária a um instinto básico humano, que é se manter vivo. Daí que, esgotadas todas as possibilidades de assegurar a um doente a continuidade de sua vida em condições que ache dignas de serem vividas, não haveria por que uma lei tomar a decisão, proibindo. Caberia a última palavra à pessoa, respeitando seu estatuto de sujeito. 

O debate, então, levou-me a concordar que não cabe a intervenção legal a priori. Mas, garantida a liberdade de decidir, essa marca da dignidade humana, surge uma questão: cessa então a responsabilidade do contexto? Da família, de outros próximos, das instituições de suporte etc.? Nessa linha, outras questões podem ser levantadas. Em que medida a percepção da perda de sentido da vida também é fruto do contexto, e não só do sofrimento individual? A percepção da pessoa de que a vida não lhe tem mais nenhum sentido, não interpela também esse coletivo? Abordagens puramente profissionais, por mais capacitadas que sejam, são apropriadas para lidar com tal situação limite? Quais os melhores argumentos a serem utilizados para convencer aquela pessoa? Não tenho resposta. Mas, o que eu pensei a partir do debate sobre eutanásia, é que há um perigo de que a necessária garantia de liberdade individual possa, ao mesmo tempo, relaxar a mobilização das pessoas envolvidas no drama e, portanto, levando a sobrecarregar com uma tomada de decisão quem está mais vulnerável. Mas, têm toda razão os debatedores de que aqui não se está mais no terreno legal e, sim, das relações, dos laços sociais e das visões de mundo em jogo. Inclusive, o que os próximos pensam a respeito da própria vida. Situação extremamente complexa.

Uma grande contribuição para se apreender melhor as dimensões humanas envolvidas nesse tema, é a leitura de Viktor Frankl, no livro Em Busca de Sentido. Ele argumentou que a melhor pergunta que se faz em qualquer situação não é o que esperar da vida, mas "o que a vida quer de mim". Nessa perspectiva, a atenção da pessoa é colocada fora dela, para uma tarefa, um sentido. Tendo sobrevivido a uma situação de quase absoluta sujeição aos condicionantes do meio, em que a possibilidade de escolher é praticamente zero, ele defende que o ser humano tem sempre uma capacidade de se elevar diante das condições. Nas suas palavras:
"Sendo professor em dois campos, neurologia e psiquiatria, sou plenamente consciente de até que ponto o ser humano está sujeito às condições biológicas, psicológicas e sociológicas. Mas além de ser professor nessas duas áreas, sou um sobrevivente de quatro campos - campos de concentração - e como tal também sou testemunha da surpreendente capacidade humana de desafiar e vencer até mesmo as piores condições concebíveis (...)

"O ser humano não é completamente condicionado e determinado; ele mesmo determina se cede aos condicionantes ou se lhes resiste. Isto é, o ser humano é autodeterminante em última análise. Ele não simplesmente existe, mas sempre decide qual será sua existência, o que ele se tornará no momento seguinte.  (...) uma das principais características da existência humana está na capacidade de se elevar acima dessas condições, de crescer para além delas." (152/3)
A leitura desse livro surpreende porque, para além da narrativa vivida de alguns elementos da "arquitetura da destruição" nos campos, ele por vezes conseguia se distanciar da condição de prisioneiro e pensava e atuava como psicoterapeuta, refletindo sobre a condição humana como se dava naquele contexto absolutamente opressor. Em certa medida, um contexto que guarda alguma semelhança com a opressão própria de uma situação em que se coloca a questão da eutanásia, uma doença ou limitação que praticamente elimina a capacidade da pessoa de agir, de interferir no seu destino. Para ler passagens do livro sobre o tema clique em LEIA MAIS,  logo abaixo.

Uma dessas passagens é:

"A divisa que necessariamente orientou todos os esforços psicoterapêuticos junto aos prisioneiros talvez encontre sua melhor expressão nas palavras de Nietzche: 'Quem tem por que viver aguenta quase todo como'. Portanto era preciso conscientizar os prisioneiros, à medida que era dada a oportunidade, do 'porquê' de sua vida, do seu alvo, para assim conseguir que eles estivessem também interiormente à altura do terrível 'como' da existência presente, resistindo aos horrores do campo de concentração. E, inversamente, ai daquele que não via mais uma meta de vida diante de si, perdia o sentido de sua existência e assim todo e qualquer sentido para suportar o sofrimento. Essas pessoas perdiam a estrutura e sucumbiam muito cedo. A expressão típica com que replicavam a toda e qualquer palavra animadora era sempre a mesma: 'Não tenho mais nada a esperar da vida'. Como se reagirá a essa atitude? (...)
"O que se faz necessário aqui é uma reviravolta em toda a colocação da pergunta pelo sentido da vida. Precisamos aprender e também ensinar às pessoas em desespero que a rigor nunca e jamais importa o que nós ainda temos a esperar da vida, mas sim exclusivamente o que a vida espera de nós. Não perguntamos mais pelo sentido da vida, mas nos experimentamos a nós mesmos como os indagados, como aqueles aos quais a vida dirige perguntas diariamente e a cada hora (...)
"Em última análise, viver não significa outra coisa senão arcar com a responsabilidade de responder adequadamente às perguntas da vida, pelo cumprimento das tarefas colocadas pela vida a cada indivíduo, pelo cumprimento da exigência do momento. (...) Para nós, no campo de concentração, nada disso era especulação inútil sobre a vida. Essas reflexões eram a única coisa que ainda podia nos ajudar, pois esses pensamentos não deixavam desesperar quando não enxergávamos chance alguma de escapar com vida. O que nos importava já não era mais a pergunta pelo sentido da vida como ela é tantas vezes colocada, referido-se a nada mais do que a realização  de um alvo qualquer através de nossa produção criativa. O que nos importava era o objetivo da vida naquela totalidade que inclui também a morte e assim não somente atribui sentido à 'vida', mas também ao sofrimento e à morte. Esse era o sentido pelo qual estávamos lutando". (103)

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