Uma iniciativa muito especial está ocorrendo no Teatro Claudio Barradas, da UFPA. É a encenação, neste fim de semana, com entrada franca, de uma peça de Samuel Becket, dos seus Fragmentos de Teatro I e II. O título da peça é retirado da fala de um personagem: “Quantos infelizes ainda o seriam hoje se tivessem descoberto a tempo em que ponto estavam”.
Cheguei nessa peça meio por acaso, pois tinha ido assistir ao musical "Máquina, a história de uma paixão sem limites", na sala 5, no mesmo teatro. Como não havia indicações claras sobre a sala, acabei entrando no Quantos infelizes... Havia um pequeno cartaz no guichê de ingressos, mas pensei que pudesse estar indicando a peça de um outro dia. Enfim! Errei e fui ver a peça do autor que desenvolveu um olhar mordaz sobre a sociedade, sobre o vazio ou o absurdo de vários aspectos da existência.
Claro que o começo não foi fácil. Em primeiro lugar, fiquei um tempo assistindo a uma peça pensando ser outra, até que me dei conta do engano. Então, confesso que senti falta de uma introdução para poder mergulhar no texto, uma voz em off que introduzisse o espectador no seu clima. Este clima estava bem reconstruído por sinal, uma penumbra enevoada que lembrava uma fria noite de uma cidade européia, talvez na Irlanda natal de Becket. Afora minha dificuldade e a sugestão que faço de uma pequena introdução para um espectador como eu, que não tem grande conhecimento da obra, acho que a peça é realizada com competência, com a profundidade e atmosfera que lhe cabem. Os atores deram muito bem conta do recado, entregaram-se com paixão em diversas cenas.
No Fragmento I, um homem de costas está posicionado ao fundo. A silhueta se percebe pelo jogo de luzes e, no primeiro plano, dois funcionários quase idênticos, liam sobre suas mesas o que seriam passagens da vida daquele homem. Seria um repasse de suas memórias pela consciência. Podia ser a leitura que ele mesmo fazia sobre o seu viver e, como tal, sem uma lógica linear e, sim, com idas e vindas e as incoerências com que se tecem os fios de uma vida individual. O homem estava sobre uma janela, iria cometer suicídio e os dois funcionários estavam empenhados em repassar os dados de sua vida, alternando momentos de concentração na leitura a momentos em que eram tomados pelos sentimentos e emoções do personagem: seus medos, desejos irracionais, angústias, ternas inquietações e lembranças - por exemplo, ao mirar o céu, a curiosidade de qual das estrelas seria Jupter; dois passarinhos na gaiola em um momento da infância. A atmosfera é austera, o que importa são os pedaços daquela existência ordinária e plena de frustrações e de irrealizações. As dificuldades de relacionamento do personagem vêm à baila, assim como a solidão como característica marcante da biografia, em um mundo tão povoado.
No segundo Fragmento, dois "trapos" humanos de uma grande cidade conversam, um cego pedinte nas ruas, mau tocador de violino, e um homem de uma perna só, de aspecto também miserável, em uma cadeira de rodas. Na conversa que travam há poucas concordâncias e vários bate-bocas. Mas, ambos ressaltam aspectos críticos de uma ordem social vazia de sentido, lida por duas figuras à margem dessa ordem. Um toque de mãos e um desajeitado abraço revelam a sede de afeto de ambos, instante logo interrompido pela violência inerente às suas posições, pois a esperteza é como um mandamento naquele contexto. No entanto, aqui e ali rasgos de humanidade, como na preocupação do cego sobre a claridade do dia e sua consciência de que a infelicidade não era tal que justificasse acabar com a vida. Quando ele tateia procurando seus poucos pertences espalhados pelo chão, o outro lhe pergunta para que servem aquelas coisas, ao que ele responde: para porra nenhuma, mas eu gosto delas! Alguma semelhança com relações que temos com algumas de nossas coisas? Também aqui um texto complexo, duro, que por vezes fustiga o espectador. A esse propósito, vale a pena rever o filme Dodeskaden, de Akira Kurosawa, que focaliza igualmente um personagem de rua em uma metrópole.
Detalhes da produção e da equipe estão no blog O Senhor do Vazio. Também, na matéria Mergulho na obra de Samuel Becket há informações interessantes sobre a produção, seu diretor e o dedicado elenco. Em vários momentos, a representação é brilhante. Uma importante realização cultural em Belém.
Nenhum comentário:
Postar um comentário