O Jornal Hoje da Globo, edição de 24 de maio, mostrou uma prática conhecida de extração de madeira e limpeza de áreas florestais para cultivo: o Correntão. O nome já diz do grau de civilização da prática, que gera um cenário de terra arrasada. Lembram as cenas dos ciclones americanos. Não há tempo para os animais saírem - afinal, estão em terra alheia.
No nosso estatuto jurídico, o uso da terra cabe, em primeiro lugar, ao proprietário. As salvaguardas existem, a responsabilidade social está inscrita na lei. Mas o instituto da propriedade em si prevalece, ajudada pela lentidão ou ineficácia dos processos judiciais contra "maus proprietários" de extensões de terra a perder de vista na Amazônia.
O dono em questão, conhecido pela eficiência em derrubadas e pela magnitude de suas posses, mora no Paraná. Um grande administrador, que gerencia negócios distantes. Usa métodos rudimentares, é certo, mas de produtividade inquestionável. Em pouquíssimo tempo a quantidade de árvores arrancadas é imbatível; árvores de quinze, vinte metros de altura vão ao chão e tudo o mais no caminho da corrente. Ao telefone, algegou à reportagem que seu único erro foi não ter providenciado a tempo a licença ambiental específica para o desmatamento flagrado pela reportagem. Iria providenciá-la. Uma formalidade para prosseguir na empresa. A cena teve lugar em Mato Grosso, cuja capital vai sediar a Copa do Mundo que tem como mote a sustentabilidade ambiental.
O ideal do desenvolvimento sustentável, nos rincões amazônicos, não é mais do que isso, um ideal. Mas é, também, um perigo! Pagaram com a vida, no mesmo dia do correntão, José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, líderes dos assentados no Projeto Agroextrativista Praialta-Piranheira, em Nova Ipixuna – PA. O manifesto de repúdio assinado por entidades diversas, incluindo a Universidade Federal do Pará, Campus de Marabá, informa que os dois foram emboscados no meio da estrada por pistoleiros. Eles viviam e produziam no lote de aproximadamente 20 hectares, onde 80% era de floresta preservada. Sobreviviam do extrativismo de óleos, castanhas e frutos de plantas como cupuaçu e açaí. No projeto de assentamento vivem aproximadamente 500 famílias - conclui o manifesto. No blog do Flávio Nassar há uma simpática foto do casal.
O correntão é típico da visão de curto prazo que há tempos manda na ocupação da Amazônia, originalmente associada ao desenvolvimento. Acompanhou-se de privatização de áreas florestais, supondo-se que a propriedade privada incentivaria o cuidado por parte de quem tem um patrimônio seu a conservar. Um dos remédios para evitar a "tragédia dos bens comuns", tal como as florestas que, sendo de todos e de ninguém, sofrem com a devastação de quem chega primeiro. A história que se seguiu é conhecida. A propriedade, nesses casos, era de fachada, não para a posteridade. Só até acabar o que nela se aproveita de imediato. Daí a necessidade do Estado, do fiscal externo para coagir usuários renitentes na ilegalidade. E os meios para tal função são escassos.
O projeto extrativista, por outro lado, a exemplo do lote de José Cláudio e Maria do Espírito Santo, traz uma revalorização de práticas ancestrais de uso múltiplo dos recursos florestais, associando produção e conservação e o reconhecimento de direitos coletivos sobre a terra. Tem futuro? É utópico? É suscetível de sustentar as populações locais? Muita pesquisa é necessária, experiências participativas estão sendo feitas, experiências de auto-gestão e de co-gestão dos recursos naturais, envolvendo comunidades, pesquisadores, empresas, governos. E, muitas vezes, poder fazê-las hoje em dia nos diversos assentamentos e reservas extrativistas, deve-se a lutas sociais e mortes de antepassados que defenderam as áreas protegidas. Nessas iniciativas, experimenta-se o futuro da floresta e, por extensão, da sociedade regional. Na sociedade mais ampla pouco se conhece sobre elas. São muito diversificadas. Seus protagonistas locais são nativos e imigrantes, principalmente de estados vizinhos. Muita inteligência está sendo aplicada nas práticas de usos múltiplos dos recursos e na manutenção de direitos de propriedade por comunidades e suas associações.
Acredita-se que a face violenta da ocupação está sendo superada, diante do crescente consenso de que é preciso conservar a natureza e de que direitos humanos são sempre inalienáveis. Quem tem o poder lá na linha de frente, nas florestas remanescentes, age de outro modo. Se der tempo, ainda usa o correntão. Ou liquida opositores. Nós na cidade, amantes do verde, devemos mais do que pensamos aos Josés Cláudios e Marias, aos extrativistas, ribeirinhos, pescadores.
Observação:
No clipping de notícias do site do Ministério do Planejamento consta:
"O sistema de monitoramento por satélite Deter, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), identificou um aumento de 444% no desmatamento no Estado de Mato Grosso, entre março e abril deste ano. Os criminosos voltaram a usar na região uma técnica altamente destrutiva, o correntão. Dois tratores possantes, unidos por uma corrente, cercam a área a ser derrubada e detonam as árvores num arrastão. O documento do relator Aldo Rebelo perdoa quem desmatou até julho de 2008. Isso cria a expectativa de que outras anistias virão." (http://clippingmp.planejamento.gov.br/cadastros/noticias/2011/5/23/antes-do-codigo-o-correntao/)
http://oglobo.globo.com/cidades/mat/2011/05/24/ |
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