sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Da Austrália, reenvio mensagem de Natal

Revendo Canberra, republico um dos posts que mais gosto do Sociologando, a propósito desta época que é sempre de lembranças e de renovação em muitos sentidos.


O título desta postagem inclui a expressão "o menino que faz aniversário", que ouvi há tempos do colega de pesquisas Jean Hébette, ao se referir ao Natal, durante uma das reuniões do nosso grupo de estudos. Hoje vem-me a mente um grande comentador e intérprete da vida de Jesus, o teólogo russo Aleksandr Mien, cujo livro Jesus, Mestre de Nazaré me foi sugerido por uma colega do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA. 

Tecendo suas reflexões em um contexto social e histórico distante, sua escrita tem uma grande qualidade, que é a de parecer travar um diálogo com o leitor,  propondo uma reflexão conjunta entre autor e leitor. E, assim, ele vai apresentando a figura de Jesus, sob ângulos por vezes surpreendentes, munido de farta documentação histórica, situando-o no seu tempo e, também, no que ele tem de universal e atemporal. Aproxima-se, portanto, da própria mensagem - muitas mensagens - do menino que faz aniversário em 25 de dezembro. 

Sem qualquer pretensão de dar uma lição religiosa, totalmente fora de minhas possibilidades ou competência, este texto reflete sobre alguns aspectos da obra do "mestre de Nazaré" que a tornam referência em muitas partes do planeta, referências culturais e ideais.  

Dentre as muitas passagens que valem a leitura da obra de Mien, há os  também muitos episódios em que Jesus exprimiu, por palavras e ações, sua concepção do ser humano universal, igualmente digno de reconhecimento independentemente de status, etnia, classe social ou gênero. Assim, por exemplo, no que tange à condição da mulher, ouve-se do autor que Jesus disse pela primeira vez a alguém tratar-se do Messias e "revelou a essência da religião do espírito" , não aos discípulos, mas a uma mulher, na Samaria; e, "ainda por cima, pecadora e herética...", nos padrões da época (p. 105). 

Mien situa a visão de Jesus sobre a igualdade radical  na condição de ser humano - nela incluída, portanto, as mulheres e os homens - no contexto da reflexão filosófica e religiosa da época, em que prevalecia o status subalterno da mulher.


Para um filósofo como Sócrates, a mulher era "um ser estúpido e enfadonho. No mundo pré-cristão, as mulheres quase sempre não passavam de servas mudas, cuja vida só conhecia o trabalho extenuante e as obrigações de casa. (...) Foi Cristo quem restituiu à mulher a dignidade humana que lhe fora tirada, o direito de ter exigências espirituais. A partir dele, o lugar da mulher não se limitou mais ao lar doméstico. Por isso, no grupo de seus seguidores mais íntimos vemos muitas mulheres.... (p. 105)

Do mesmo modo, relembramos a vivência de Jesus no meio das pessoas comuns e o seu objetivo maior de elevar os seres humanos ao plano divino desde "este mundo". Daí ter andado e convivido entre os "mais simples", de uma maneira muito diversa do que  igrejas instituídas assumiriam muitas vezes ao longo de suas histórias: poderes  materialmente distantes dos seus "povos".


O desdém pelas hierarquias sociais ficou patente nas manifestações de divindade de Jesus em momentos ordinários, entre pessoas comuns e não em situações solenes ou majestáticas, de evidente poder e autoridade. Foi assim na famosa transformação de água em vinho durante uma festa de casamento, episódio sobre o qual Mien assim analisa:

Foi assim que o poder de Jesus sobre a naureza se manifestou pela primeira vez, não com sinais temíveis, mas em uma mesa posta, no meio das canções alegres de uma festa de casamento. Usou pela primeira vez o seu poder sobrenatural quase por acaso, para que não se tornasse triste um dia festivo. Afinal, ele viera para dar aos homens a alegria, a plenitude, a vida 'em abundância'. (p. 78)

Há, ainda, a célebre cobrança do amor incondicional pelos outros, recíproco, a começar pelos inimigos, como resultado dessa sua concepção universal do ser humano digno de respeito e reconhecimento. Além do "oferecer a outra face" ao agressor, Jesus contribuiu também na história da construção do Direito como "domesticação da vingança". Sua concepção de irmão e próximo rompia com a noção corrente: irmão e próximo passava a ser qualquer um, sem relação com sua posição ou comunidade de origem. A compaixão, a solidariedade, as ações para com os outros eram os indicadores dessa condição de irmandade ou proximidade. Esses sentimentos e ações recíprocos deveriam nortear a normatização da vida coletiva,  as relações jurídicas, como se verifica na seguine passagem: 

Nos códigos pagãos a punição muitas vezes era mais pesada do que a própria infração. (...) "Olho por olho, dente por dente". Jesus distinguiu com nitidez o direito penal de uma justiça baseada em outros princípios. Para todo mundo, é natural odiar seus inimigos; mas os filhos de Deus devem vencer o mal com o bem, devem lutar em seus corações contra o sentimento de vingança. Não só. Devem desejar o bem daqueles que o ofendem. Esta é uma tarefa bastante ousada, um modo de manifestar uma força interior autêntica (...).


E as belas palavras de Jesus:

Se amais só aqueles que vos amam, que mérito tereis com isso? (p. 96)

Tem-se aqui muito mais do que a recomendação de princípios técnicos que tornem justa a justiça. Na fórmula mesma da lei devem inscrever-se princípios de reciprocidade humana, isto é, o sentimento claro dos laços que aproximam os membros dessa humanidade comum. Jesus fazia uma cobrança singular, pois uma tal tarefa, como diz o intérprete, deveria expressar uma grande força interior.

Na sua trajetória, Jesus fez inúmeros convites, endereçados democraticamente, sem distinções. Certamente em todas as culturas, um convite feito a alguém, a uma festa, a uma confraternização, a uma partilha, a um trabalho, a uma  ação coletiva, a uma ceia... é a expressão, por excelência, do reconhecimento da pessoa em seu valor, em sua dignidade. Sobretudo, em sua individualidade. É, assim, uma relação entre sujeitos.

Todos, por certo, já vivemos a tristeza de não sermos convidados. Bem a propósito, o colega Jean Hébette relatava dias atrás o depoimento de um pescador que entrevistara durante uma pesquisa de campo. Era um participante de um movimento social em defesa de lagos contra a pesca predatória no município de Porto de Moz, à margem do rio Xingu. O entrevistado manifestara seu orgulho de estar sendo convidado por muitos para participar de eventos, de reuniões dentro e fora de sua localidade e de seu município.

Os convites do aniversariante Jesus não foram dirigidos a um sujeito passivo, como se sabe bem. Aceitá-lo era dar um grande passo, laborioso, implicava compromissos que não eram leves, pois se tratava de construir o Reino de Deus. Na história humana  foram muitas as visões diferentes - e os embates e as guerras - quanto ao que significa este Reino, como construí-lo. Muitas interpretações conflitantes, que enfatizaram determinados ângulos ou interpretações, em detrimento de outros, ortodoxias em lugar de diálogos e de ecumenismo. Tudo bem conhecido.

Independentemente da crença específica que se tenha, ou não se tenha, é  notável que a data do Natal é símbolo de tanta coisa boa. Queiramos ou não,  entre os povos  seguidores do Cristianismo e, mesmo em outros, a rotina muda.  É certo que para uns mais do que para outros. A mensagem daquela biografia que hoje se relembra, é forte. É forte no que ela tem de universalismo, de apreço pela humanidade e, notadamente, ao combinar de modo tão peculiar o interesse pelo coletivo e, dentro deste coletivo, também pelo mais particular, o mais humilde - basta que lembremos as passagens sobre a alegria da volta do filho que partira, a ovelha desgarrada... Nesse sentido, a gente sente e, humildemente, pensa compreender a grandeza dessa construção e dessa herança. 

Um comentário:

  1. Olá Cristina, não sabia q estavas tão distante.
    Estava fazendo a retrospectiva do ano para os homens q pintam o cabelo e me lembrei de ti q aprecias a série.
    Abraços e feliz 2012!

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