A pequena carta que o apóstolo
Paulo escreveu ao amigo Filêmon narra como ele, Paulo, lidou com uma
instituição social de seu tempo, a escravidão. Acho que o significado pleno da
carta ainda hoje nos escapa. A carta fala de Onésimo, escravo de Filêmon. Ele
havia fugido e, capturado, foi levado à mesma prisão onde Paulo estava preso. Lá
então, deu-se a conversão de Onésimo. Sobre ele, disse Paulo: “... meu filho,
que fiz nascer para Cristo na prisão (...). Ele é como se fosse meu próprio
coração.” Cumprido o tempo de sua pena, Onésimo estava sendo reenviado pela
polícia ao patrão, a quem então Paulo endereçou a carta. A narrativa e o pedido
na carta são surpreendentes!
Primeiramente, Paulo diz que
gostaria de poder guardar Onésimo a seu lado, para ajuda-lo no cativeiro.
Contudo, ele não se permitiria faze-lo sem o aval de Filêmon. Por que? Eis a razão:
“... para que a tua bondade não seja forçada, mas espontânea.” Ou seja, Paulo
respeitava absolutamente a liberdade de escolha do patrão entre abrir mão ou
manter seu direito legal de dono de escravo.
Em seguida, Paulo reafirmou o
conceito cristão de humano – a filiação ao Pai. Onésimo convertido já não era
mais um simples escravo na rede de relações sociais daquele tempo e lugar.
Prosseguiu Paulo ao amigo: “Se ele te foi retirado por algum tempo, talvez seja
para que o tenhas de volta para sempre (...) como um irmão querido (...) tanto
como pessoa humana quanto como irmão no Senhor. Assim, se estás em comunhão de
fé comigo, recebe-o como se fosse a mim mesmo”.
Não se sabe a resposta de Filêmon
àquele convite radical. Mas, sendo um “irmão de fé", é de se esperar que o
aceitasse e que, portanto, a classificação social recuaria. Filêmon certamente escolheria
a emancipação cristã. E receberia o antigo escravo como irmão! A lei perderia
para o amor fraterno.
Que maneira é essa de abolir uma escravidão?
Note-se que Paulo usa a palavra
coração para se referir ao “nascer para Cristo”. Paulo diz que Onésimo
tornara-se como se fosse seu próprio coração. E coração, na Bíblia, tem um sentido
forte. Era como se fosse o centro da pessoa, o cerne de seu caráter. A
conversão, portanto, tocava o coração dos envolvidos. E, mudando o coração,
mudava a prática. Portanto, chama a atenção nesse episódio, o fato de que não
era só o escravo que estava se libertando; senhor e escravo se libertavam.
A experiência de conversão de Onésimo pode inspirar lutas políticas de
nosso tempo?
Talvez teologicamente essa
pergunta não tenha sentido. Não sei se uma carta teológica pode inspirar
diretamente lutas políticas concretas. Mas, acho que ela é rica para pensarmos
a nós mesmos e a nossa vida em sociedade.
Em primeiro lugar, vê-se que na
emancipação que Paulo pregava, não havia um polo dominador que tinha o poder
absoluto de libertar o outro, o dominado. Ambos “nascem de novo”, como havia
ensinado o Mestre de Nazaré. A mudança na prática das relações sociais – não haveria
mais escravo e senhor - era a consequência lógica e necessária da transformação
mais profunda. E uma libertação dessa natureza não pararia ali!
Em segundo lugar, Paulo ensina
que diante do amor do Pai, a ordem humana é menor! O amor do Criador é a
determinação última, absoluta. Mas Paulo ensina, também, que aderir à opressão
ou ao amor é escolha. Não fatalismo! Portanto, instituições que descaracterizam
o ser humano são frutos de escolha, de escolhas individuais e coletivas. É
notável que Paulo quisesse respeitar a liberdade de Filêmon para “exercer sua
bondade”. Seria tão mais fácil impor, dar uma ordem! E, aí, vem sutilmente uma
característica fundamental do legado cristão: se Deus criou o céu e a terra, as
mulheres e os homens, a natureza e o cosmos... as relações opressoras fomos nós
que criamos! E escolhemos continuar com elas, invertendo o projeto original! E,
portanto, vivemos a vida social como peso, como impossibilidades, como
carências, como dependências, como frustrações, criando separações, muros etc.
etc. Contudo, ainda é a liberdade que nos define!
Lá naquela prisão, Paulo estava
libertando um escravo e um senhor. E, ao mesmo tempo, dizendo coisas para nós,
séculos depois. Ele estava, sobretudo, replicando a lição do Cristo, o Verbo
encarnado. Ocorre que nós continuamos escolhendo mal... Mantemos instituições que
nos desviam da plenitude própria da Sabedoria que nos criou filhas e filhos,
irmãs e irmãos. Paulo estava tornando concreto o chamado de Jesus aos cansados
e sofridos: “... meu jugo é suave e meu fardo é leve” (Mt 11, 30).
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