sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Da Sabedoria da Criação e nossas trevas históricas

Nossa forma de enxergar o mundo e de vive-lo é uma construção social. O mundo que conhecemos não é tudo. Nem é o essencial. De fato, nosso real é cheio de contradições e de negações. 

Talvez tardiamente adquiri a convicção de que as escrituras "sagradas" são fonte de conhecimento e, sobretudo, de conhecimento crítico sobre o que existe. Na tradição bíblica, nossa origem é representada totalmente diferente do que construímos historicamente. Somos filhos da Sabedoria, da Luz, do Verbo... como nos ensinou João no Prólogo de seu Evangelho: "No princípio existia a Palavra, e a Palavra estava junto de Deus. Tudo foi feito por meio dela, e sem ela nada foi feito. O que estava nela era vida, e a vida era a luz dos seres humanos. Essa luz brilha nas trevas, e as trevas não a venceram" (Jo 1, 1,5). Então, no cerne da Criação estavam a vida e a luz. É uma bela representação, que nos assimila ao saber do Criador.

João disse, no mesmo texto, que os seres humanos não conheceram a luz que fez o mundo. Ou seja, perdemos ou esquecemos nossa ligação original com a sabedoria e, por fim, tomamos as trevas como o caminho a seguir, o real. Por vezes as trevas parecem vencer - basta ouvir os noticiários, por exemplo. Mas, o real é justamente o oposto do que aprendemos a viver. 

Na perspectiva bíblica, o Cristo nos trouxe  novamente a Palavra que está no nosso eu profundo: o amor. Ele a expressou nas parábolas como as do filho pródigo e do bom samaritano, assim como no episódio do apedrejamento da adúltera ou no encontro com a samaritana perto do poço de Jacó. Amor, perdão e acolhimento independentemente das diferenças de classe ou etnia, das posições, do que se tenha feito ou cometido... amor e perdão em primeiro lugar. Essa "fórmula" aberta a todos traz nossa verdade, para além das nossas escuridões. Foi assim que em seu evangelho João se referiu pela primeira vez a Jesus: "E a Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós". 

A Palavra encarnada era redentora: "Ela deu o poder de se tornarem filhos de Deus a todos aqueles que a receberam (...) Porque de sua plenitude todos nós recebemos, graça e mais graça". Tornar filhos de Deus a todos, significava reconhecer em todos a mesma origem. O apóstolo Paulo falaria muitas vezes da nulidade das classificações sociais. Em Gálatas, ele veio a dizer que não havia mais romano, grego, judeu, homem ou mulher. Ou seja, as classificações não possuem substância. Expressam as trevas que deixamos ocupar o lugar da luz. 


Em 1 Coríntios 6,19, Paulo fez a seguinte pergunta: "Ou vocês não sabem que seu corpo é templo do Espírito Santo, que está em vocês e que vocês receberam de Deus? E que por isso vocês não pertencem a si mesmos?". Essa fala é forte. Ela nos interpela individualmente, chama cada um a cuidar de si como de um bem precioso do qual não somos donos exclusivos Recebemos a vida e o corpo como uma graça a honrar e cuidar. E, por conseguinte, somos chamados a cuidar dos outros, iguais em morada do Espírito. Nunca um outro é nossa propriedade. Nunca objeto de nossa dominação. Pois em última instância seu "dono" é o Criador, Sabedoria e Luz. Essa é a substância que nossas histórias negam. Ao afastar a luz, enxergamos as trevas como o real. E, portanto, respondemos mal aos desafios da vida, às carências e dores, sem buscar inspiração na Palavra daquele Filho do Homem que armou sua tenda entre nós. Isso significaria dedicar nossas inteligências e riquezas a cuidar dos outros e da nossa "casa comum". Saúde, cultura, fruição, conhecimento, oportunidades, partilha... esses são os nortes da realidade.


Certo que construímos as declarações de direitos universais, construímos sistemas legais inspirados por certa noção de que cada ser humano tem algo de sagrado e, portanto, de intocável. De digno. Jesus sempre fazia questão de agir e refletir sobre os menores dentre os menores, um mendigo cego, um leproso, uma mulher com hemorragia há doze anos, uma samaritana casada várias vezes, uma adúltera, um pecador arrependido, as crianças etc. Ninguém está excluído da mesa farta do amor. Não por acaso ele começava o resgate da humanidade caída pelos que estavam mais em baixo, mais sofridos e esquecidos. 

É assim, por exemplo, que Maria grávida de Jesus, falaria em seu cântico: "Minha alma exalta o Senhor (...) Ele dispersou os arrogantes de coração. Derrubou dos tronos os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos..." (Lucas 1, 46-51). E em outra passagem surpreendente do Evangelho de Lucas, conforme ouvi em uma liturgia, a apresentação de João Batista é feita assim: " Era o décimo quinto ano do império de Tibério César. Pôncio Pilatos era governador da Judéia. Herodes era tetrarca da Galiléia (...) Anás e Caifás eram sumos sacerdotes. A palavra do Senhor foi então dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto" (Lucas 3, 1-2). Ou seja, passando pelos grandes da história, a palavra de Deus foi a um homem no deserto, que pregaria um batismo de arrependimento, um início de mudança de vida e de valores das pessoas, para receberem a maior dádiva que viria: a Luz salvadora de cada um e de todos. 

Nossa lógica em geral é orientada pelas trevas, isto é, pelo que é passageiro e sem raízes. Pois, como entender nossas respostas coletivas às crises? As guerras, externas e internas, que travamos?

Escrito algumas décadas antes dos Evangelhos, um pequeno livro da Bíblia chamado Sabedoria, abre com a seguinte frase: "Amem a justiça, vocês que julgam a terra". E mais adiante, consta a seguinte recomendação: "Não busquem a morte no erro da vida de vocês, nem provoquem a ruína com as obras que praticam, pois Deus não fez a morte, nem se alegra com a destruição dos seres humanos. Ele tudo criou para que exista. As criaturas do mundo são sadias, e nelas não há veneno de ruína. O mundo dos mortos não reina sobre a terra. Porque a justiça é imortal" (Sb 1, 12-15). 

Não foi Deus, então, que criou a morte. Na nossa narrativa bíblica, ele é provedor de vida. Além disso, vemos que a morte não reina. O que permanece, nossa rocha dura, é a justiça. Nós humanos construímos sociedades de risco onde o mais frequente, ainda, é a morte por causas evitáveis. Acreditamos ser essa a realidade, pois sentimos tão claramente sua opressão. 

Já a "negação religiosa do mundo" aponta para outra realidade. Ela fala que vida é graça e requer cuidado. Não nos pertence. É como um crédito divino. Na perspectiva bíblica, nossos próximos são todos, notadamente os diferentes, os fracos, os frágeis... A mesa posta e a taça transbordante, tão belamente descritas no Salmo 23, é para todo mundo. Porque narramos assim nossa vida, nossa criação e nosso destino? Quando assim o fazemos, expressamos a luz e a sabedoria que nos habitam.

Um dia pudemos acreditar que caminhávamos para sermos melhores. Porém, continuamos com sentimentos muito primitivos. E aderimos cotidianamente ao mal. Em certo momento de nossa história, talvez ainda na noite dos tempos, separamos duas dimensões: de um lado, nossas capacidades de progredir e de moldar o mundo; de outro lado, nossa tendência ao amor. Soltamos os freios da vontade de poder e dominação.

O mundo dos mortos é fortíssimo! O olho por olho continua, a acumulação para um amanhã que não controlamos move exércitos e sociedades. Mas isso tudo não corresponde ao real. Passará!

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