Nessa segunda década do século XXI, temos pouco a comemorar. Do Brasil mais a vergonha do quadro social do que qualquer orgulho de nossos avanços. E temos orgulhosos feitos em cultura, arte, tecnologia, ciência, história...
Tememos o desconhecido na esquina, toleramos desigualdade e injustiça, somos violentos no trato, ainda que cordiais e alegres. E reclamamos pouco do que fazemos com os jovens nascidos e vividos em situações de risco... a encher as prisões e inflar os números de delitos. Morte prematura do futuro. Não relacionar nossos medos e dores com a negação cotidiana a crianças e jovens de oportunidades de acesso ao patrimônio social. Negados lhes são uma viagem, um tratamento dentário, uma língua estrangeira, uma biblioteca, uma visita a um museu, um quarto de estudo...
Tudo isso se reflete na trágica composição de nossas casas legislativas, com muitos insensíveis, salvo notáveis exceções.
De outras bandas, também tem mil exemplos que derrubam qualquer narrativa da história como progresso. Vemos o desmonte "à la légère" dos sistemas de proteção social, base do conceito de cidadania. Herança que começou a se institucionalizar em fins do século XIX. Como aceitamos abrir mão do princípio de que cabe ao conjunto da sociedade - representado por Estados garantidores da cidadania - proteger os seus membros? Todos! Assegurar-lhes as condições básicas para participar na construção do todo pelo trabalho, pela vida, pela civilidade, pela solidariedade e pelo amor. Como esse princípio é abandonado, quando a própria própria proteção da vida alimentaria o mercado muito mais do que o princípio da escassez e da concorrência desregulada. E tantos estudos e pesquisas mostram a falácia de que justiça social é pura questão contábil. Redistribuição de renda e redução de desigualdade são questões contábeis e orçamentárias, mas submetidas a valores coletivos.
E o ideal da tecnologia que aliviaria a humanidade da pena de trabalhar e sofrer? Por que desemprego não se combate com redução de jornada para abrigar o maior número? Não tenho expertise para toda a resposta. Mas a resposta é técnica e, sobretudo, política. Envolve escolhas de sociedade. E muitos estudos competentes o provam.
Mesmo quem não suporta Marx admite a tese: nossas forças produtivas avançam incontinenti, sabemos curar doenças e fomes, produzir e usufruir em escalas e maneiras que nenhum "século anterior poderia sonhar". Mas, seguimos velhas conversas. Como consumidores, separamo-nos do cidadão que somos, nas palavras do cientista político Robert Reich, que nos vê como figuras cindidas: até nos preocupamos com o coletivo, mas queremos mesmo é fazer o dinheiro render mais.
Lamento que uma de nossas fontes mais profícuas de conhecimento sobre o mundo e sobre nós mesmos, muitos consideram ultrapassada; no caso de nossa tradição histórica, as escrituras bíblicas. Nelas estão fontes de negação do real fortíssimas. Sobretudo, indicações de que muito de nosso "real" não tem substância, são "nadas" (expressão do teólogo Karl Barth); nadas pelos quais vivemos, morremos e matamos, como se fossem tudo.
Segundo esses textos antigos nossas lógicas são pobres. Por exemplo, na abertura do Evangelho de João está narrada nossa origem humana na sabedoria: "No princípio era a Palavra, e a Palavra era Deus. (...) O que estava nela era vida, e a vida era a luz dos seres humanos. Essa luz brilha nas trevas, e as trevas não a venceram. (...) A luz verdadeira que, vindo ao mundo, ilumina todos os seres humanos. Ela estava no mundo, e o mundo foi feito por meio dela, mas o mundo não a conheceu". (Jo 1, 1-11) E prossegue então reafirmando nossa igualdade absoluta, pois nos torna todos "filhos". Essa igualdade de origem é descontruída em nossa história. A vinda do Filho reafirma essa sabedoria original da qual emanamos: "E a Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (...) de sua plenitude todos nós recebemos, e graça e mais graça". Mas, a mesma negação de que fala João, reproduzimos. Não vemos a tenda.
Outra negação do real Maria expressa no seu cântico, inspirada pelo Espírito Santo (pela luz, portanto, que nos gerou a todos). Disse: "... Ele agiu com a força de seu braço. Dispersou os arrogantes de coração. Derrubou dos tronos os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu os ricos sem nada".
Será que nos deixamos inspirar por essa inspiração de Maria? O que queria ela dizer com essa reflexão sobre a ação do Criador cuja "misericórdia perdura de geração em geração"? (Lucas 1, 46-53). Quem segrega somos nós, quem culpa somos nós, quem discrimina somos nós e quem hierarquiza somos nós.
Mais tarde o Filho, convidando-nos a amar os inimigos, fez uma afirmação já presente nos antigos salmos: Deus não distingue; acolhe! "... amem seus inimigos, façam o bem e emprestem sem esperar nada em troca. Então a recompensa de vocês será grande. E vocês serão filhos do Altíssimo, pois ele é bondoso também para com os ingratos e maus. Sejam misericordiosos, como o Pai de vocês é misericordioso" (Lucas, 6, 35-36). Nosso dever, portanto, é a misericórdia, como nos "fabricou" a Palavra original. A exclusão, a hierarquia, não nos cabe. Não nos cabe nem nos gabar, pois Ele é bondoso também com os maus. Ou seja, calma lá! O que nos interpela é nossa condição original de Filhos da sabedoria, da luz. Como impregnar nossa lógica humana dessa lógica dialética? Penso que é preciso meditar profundamente sobre as palavras de João, de que rebemos dessa plenitude, graça e mais graça.
Graça e mais graça é o que temos, o que usufruímos, o mundo, a natureza e nossos pares. Gratidão e reconhecimento do próximo são atitudes mais consoantes com nossas tendências profundas do que o fechamento, o exclusivismo, em suas traduções de racismo, xenofobia, discriminações etc.
Nestes tempos de autoridades desgastadas, importa refletir o significado do que disse Jesus a Pilatos: "Você não teria nenhuma autoridade sobre mim, se ela não lhe tivesse sido dada do alto" (João, 19, 11). E Paulo, anos depois, diria na Carta aos Romanos: "... não existe autoridade que não venha de Deus...". Parece estranho, mas é crítica radical! Ocupar função política no corpo social não é tarefa leve, nem particularista. Advogar-se poder "divino" e exerce-la segundo lógica humana pequena, fere nossa constituição mais profunda.
Então, essas sabedorias estão aí, sempre novas, sempre mobilizadoras, a negar nossas lógicas e convicções sobre o real. Ela aponta para respostas aos nossos problemas que vão sempre no sentido da partilha, da solidariedade e da confiança própria da condição de filhos de um Pai misericordioso - a cada dia suas preocupações. Essa confiança se opõe ao desejo e à prática da acumulação, dos muros, da punição e da classificação. E, assim, libera nossa capacidade maior, a inteligência e a criatividade inspiradas na sabedoria original da luz. Por que narramos nossa origem de tão alto e construímos nossas sociedades de tão baixo?
Segundo esses textos antigos nossas lógicas são pobres. Por exemplo, na abertura do Evangelho de João está narrada nossa origem humana na sabedoria: "No princípio era a Palavra, e a Palavra era Deus. (...) O que estava nela era vida, e a vida era a luz dos seres humanos. Essa luz brilha nas trevas, e as trevas não a venceram. (...) A luz verdadeira que, vindo ao mundo, ilumina todos os seres humanos. Ela estava no mundo, e o mundo foi feito por meio dela, mas o mundo não a conheceu". (Jo 1, 1-11) E prossegue então reafirmando nossa igualdade absoluta, pois nos torna todos "filhos". Essa igualdade de origem é descontruída em nossa história. A vinda do Filho reafirma essa sabedoria original da qual emanamos: "E a Palavra se fez carne e armou sua tenda entre nós (...) de sua plenitude todos nós recebemos, e graça e mais graça". Mas, a mesma negação de que fala João, reproduzimos. Não vemos a tenda.
Outra negação do real Maria expressa no seu cântico, inspirada pelo Espírito Santo (pela luz, portanto, que nos gerou a todos). Disse: "... Ele agiu com a força de seu braço. Dispersou os arrogantes de coração. Derrubou dos tronos os poderosos e exaltou os humildes. Encheu de bens os famintos e despediu os ricos sem nada".
Será que nos deixamos inspirar por essa inspiração de Maria? O que queria ela dizer com essa reflexão sobre a ação do Criador cuja "misericórdia perdura de geração em geração"? (Lucas 1, 46-53). Quem segrega somos nós, quem culpa somos nós, quem discrimina somos nós e quem hierarquiza somos nós.
Mais tarde o Filho, convidando-nos a amar os inimigos, fez uma afirmação já presente nos antigos salmos: Deus não distingue; acolhe! "... amem seus inimigos, façam o bem e emprestem sem esperar nada em troca. Então a recompensa de vocês será grande. E vocês serão filhos do Altíssimo, pois ele é bondoso também para com os ingratos e maus. Sejam misericordiosos, como o Pai de vocês é misericordioso" (Lucas, 6, 35-36). Nosso dever, portanto, é a misericórdia, como nos "fabricou" a Palavra original. A exclusão, a hierarquia, não nos cabe. Não nos cabe nem nos gabar, pois Ele é bondoso também com os maus. Ou seja, calma lá! O que nos interpela é nossa condição original de Filhos da sabedoria, da luz. Como impregnar nossa lógica humana dessa lógica dialética? Penso que é preciso meditar profundamente sobre as palavras de João, de que rebemos dessa plenitude, graça e mais graça.
Graça e mais graça é o que temos, o que usufruímos, o mundo, a natureza e nossos pares. Gratidão e reconhecimento do próximo são atitudes mais consoantes com nossas tendências profundas do que o fechamento, o exclusivismo, em suas traduções de racismo, xenofobia, discriminações etc.
Nestes tempos de autoridades desgastadas, importa refletir o significado do que disse Jesus a Pilatos: "Você não teria nenhuma autoridade sobre mim, se ela não lhe tivesse sido dada do alto" (João, 19, 11). E Paulo, anos depois, diria na Carta aos Romanos: "... não existe autoridade que não venha de Deus...". Parece estranho, mas é crítica radical! Ocupar função política no corpo social não é tarefa leve, nem particularista. Advogar-se poder "divino" e exerce-la segundo lógica humana pequena, fere nossa constituição mais profunda.
Então, essas sabedorias estão aí, sempre novas, sempre mobilizadoras, a negar nossas lógicas e convicções sobre o real. Ela aponta para respostas aos nossos problemas que vão sempre no sentido da partilha, da solidariedade e da confiança própria da condição de filhos de um Pai misericordioso - a cada dia suas preocupações. Essa confiança se opõe ao desejo e à prática da acumulação, dos muros, da punição e da classificação. E, assim, libera nossa capacidade maior, a inteligência e a criatividade inspiradas na sabedoria original da luz. Por que narramos nossa origem de tão alto e construímos nossas sociedades de tão baixo?
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