Para o bem e para o mal, o trabalho é um meio de acesso à cidadania, a ponto de muitos julgarem mal políticas sociais destinadas a pessoas, ou a categorias de pessoas que não trabalham. Nele ancoramos boa parte de nossa identidade pessoal, social, auto-estima... E como dependemos do nosso "poder de compra", é uma barra pesada viver o desemprego. Por outro lado, a dedicação ao trabalho é uma justificativa fortíssima para o direito de acumular riquezas, mesmo em detrimento dos outros.
Para repensar nosso mundo do trabalho e suas lógicas, a leitura litúrgica de hoje, do "Sermão da Montanha" (Mt 6, 25-34) é um convite. Me arvoro aqui a refletir sobre isso, sem pretender ser especialista em questões de fé, pelo contrário, muito menos a praticante fiel dessa Palavra. É uma reflexão apenas, de uma leiga.
Na Bíblia que tenho o trecho é intitulado "Aprender com as aves e os lírios" (Ed. Paulus, 2014, p. 1193). Jesus chama a não se preocupar com o comer, o beber ou o vestir, pois "a vida não vale mais que comida, e o corpo mais do que a roupa?". O Mestre mais uma vez usa a natureza para ilustrar sua mensagem. As aves e os lírios do campo, que não trabalham e, mesmo assim, mais belos do que qualquer realeza. Ele então nos incita a não centrar as preocupações no trabalho e na riqueza, mas a buscar o Reino de Deus e sua justiça, de onde então as coisas estariam garantidas a todos.
Se parece óbvio que somos mais do que as coisas de que nos servimos, na prática vivemos o contrário. Por que não conseguimos a confiança no Pai e não aproveitamos o mundo, seus recursos, a natureza que, associada à inteligência e criatividade humanas, é pródiga? Quando Jesus nos pergunta o valor da comida e das roupas, ele está chamando a atenção para nossa sacralidade - nossa vida não acaba aqui - e, portanto, para os valores de vida que orientam nossos trabalhos, em suma, a base material de nosso viver.
Se trabalhamos como dom de vida, que não nos pertence, salvo para cuidar dela com a confiança de fazermos parte de um projeto maior, tudo muda. Mas como alcançar isso, se preciso saber se o que estou produzindo aqui e agora consigo guardar, para mim e para os do meu círculo? E, se eu não vigiar e juntar cada vez mais, não vou me apropriar e usufruir, e deixar para os meus herdeiros... Isso se dá no plano individual e, sobretudo, coletivo. Fronteiras, exclusivismos, tudo vem dessa mentalidade que não nos deixa viver como Ele convida: "a cada dia suas próprias preocupações!"
Somos mais que materialidade, somos seres espirituais, temos sonhos e símbolos, valores estéticos e morais, mas reduzimos nosso labor a apenas isso. A divisão do trabalho está ligada em tantas letras na Bíblia com a ideia da solidariedade entre os diferentes (ver as Cartas de Paulo). Mas, para muita gente, é só obrigação e pobreza.
O trabalho é central. O Sermão da Montanha nos interpela a questionar o sentido forte que damos a ele. Como mudar o coração? O Mestre estava falando ao novo Homem e à nova Mulher que temos dentro de nós, iluminados que somos pelo Espírito Santo. Continuamos a trabalhar e, assim, a conquistar o mundo, aplicando o dom da inteligência, com liberdade. Ou seja, somos livres para construir o mundo, é nossa responsabilidade. Mas, desde há muito tempo, o fazemos com o velho pensamento e os velhos instrumentos! E isso nos encerra no ciclo do trabalho como sofrimento e da acumulação como horizonte.
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