terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Atingidos de Belo Monte e a divisão do trabalho no século XXI


No noticiário desta manhã, mais uma manifestação de insatisfação por parte de comunidades atingidas pela Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, no Pará. São índios Juruna que bloquearam o acesso a um dos canteiros de obras, reclamando dos prejuízos à pesca devido à turvação das águas dos rios. Eles reivindicam compensações ambientais e a construção de poços artesianos nas aldeias. A situação de tais populações, que dessa forma aparecem como problema, um obstáculo no desenvolvimento, ganha uma luz interessante se analisada a partir do quadro de referência que orientou a reflexão dos fundadores da sociologia na virada do século XIX para o XX. Em especial, as reflexões sobre o significado da divisão do trabalho. Destaca-se a obra de Emile Durkheim, na esteira da pioneira análise de Adam Smith, um século antes, que vira na divisão do trabalho em ascensão um fator chave da riqueza das nações

Mostrados assim, interrompendo os trabalhos, a imagem de alguns de seus representantes sentados à margem da estrada tendo a dialogar um funcionário da empresa Norte Engenharia, suscita a indagação das bases em que assenta o tal diálogo. A indagação não se aplica apenas a este  caso específico, mas às várias comunidades que se consideram atingidas pelos efeitos da barragem e injustiçadas tanto nas compensações recebidas quanto em seu direito legítimo de voz e poder de decisão nos processos em curso. Perguntas básicas: Há reconhecimento mútuo entre os atores em confronto? São os grupos indígenas plenamente reconhecidos, com um lugar social assegurado no conjunto da sociedade brasileira? Idem para os grupos camponeses e os extrativistas que utilizam os recursos naturais diretamente impactados.  

Por outro lado, a construção da hidrelétrica, pelas vicissitudes que marcam sua trajetória, pela tônica das relações com as populações locais, inscreve-se em uma tradição de ausência de pleno reconhecimento nas relações entre o Estado brasileiro e a sua porção norte, a região amazônica e seus entes federados. O Estado do Pará - e particularmente a maioria das populações locais - não dispõe do pleno reconhecimento de suas contribuições ao desenvolvimento do conjunto da sociedade nacional. Portanto, é parceiro menor. O próprio fato de a Eletronorte não ter escritório em Belém testemunha um quadro de desconhecimento, de estranheza. Portanto, falta a premissa básica do reconhecimento das mútuas contribuições que fundamenta as trocas baseadas na divisão do trabalho social, na perspectiva daqueles pensadores clássicos. Os termos da cooperação entre as partes não são negociados, mas impostos. Não se trata propriamente de troca, mas de uma apropriação quase unilateral, com compensações mal negociadas .

Estas reflexões vêm a propósito da re-leitura do conceito de divisão do trabalho para as aulas de Sociologia do Trabalho.  A tese original de Emile Durkheim era de que a divisão do trabalho própria das modernas sociedades industriais, longe de se resumir a processo econômico, era expressão de um novo tipo de solidariedade social, de um novo tipo de vínculo entre as pessoas, que se relacionam umas com as outras não mais por tradição, por hierarquia ou servidão, mas por interdependência, por se necessitarem mutuamente. O organismo como um todo não pode prescindir de suas várias funções, mesmo as aparentemente mais simples. É claro que a abordagem tinha muito de utopia. As greves e crises econômicas apontavam graves problemas e, nesse sentido, ele cunhou o conceito de anomia, para explicar os problemas de integração que se mostravam, por exemplo, no aparente aumento do suicídio, precisamente em sociedades avançadas economicamente. Já Marx tratara o fenômeno sob a lente da exploração do trabalho e, inicialmente, abordara o trabalho proletário como alienação. E Max Weber discutia o avanço da burocratização com a crescente racionalização das condutas que se consolidava nas várias esferas da vida social. Ela compunha o contexto de previsibilidade e de paz social necessário aos investimentos capitalistas e sua contabilidade   racional.

Mas, como é próprio dos autores clássicos, a abordagem da interdependência fruto da divisão do trabalho social, de Durkheim, ainda contribui para aguçar nossa reflexão sobre o que nos cerca. Em seus esforços para consolidar a Sociologia como ciência e, portanto, seu método próprio de tratar o social, ele estudou a divisão do trabalho como fonte de solidariedade. Sociólogo, recusando-se a ver na especialização crescente das funções somente o mecanismo econômico, fator de produtividade, via nelas, ao contrário, um testemunho de como as "partes" da sociedade precisavam umas das outras e tanto melhor quanto mais se especializavam para produzir o bem-estar do conjunto, dividindo as funções. A estruturação do Direito em áreas correspondentes à complexidade da vida era uma prova da necessidade de novas regras de convivência, não apenas regras repressivas (Direito Penal), mas também restitutivas (os ramos econômico, processual, trabalhista, familiar...). Dizia ele:

"... o mais notável efeito da divisão do trabalho não é aumentar o rendimento das funções divididas, mas torná-las solidárias. Seu papel, em todos esses casos, não é simplesmente embelezar ou melhorar sociedades existentes, mas tornar possíveis sociedades que, sem elas, não existiriam. (...) É possível que a utilidade econômica da divisão do trabalho tenha algo a ver com esse resultado, mas, em todo caso, ele supera infinitamente a esfera dos interesses puramente econômicos, pois consiste no estabelecimento de uma ordem social e moral sui generis. Há indivíduos ligados uns aos outros que, não fosse esse vínculo, seriam independentes; em vez de se desenvolverem separadamente, concertam seus esforços; são solidários, e de uma solidariedade que não age apenas nos curtos instantes em que os serviços se intercambiam, mas que se estende bem além disso". (p. 27) 

Subjacente a essa análise, está uma idéia de igualdade social básica entre os membros do coletivo, o que não quer dizer ausência de diferenças. Afinal, ainda que as contribuições de uns e outros sejam diferentes, elas não são menos necessárias ao todo social e as trocas a que dão lugar só se podem estabelecer entre sujeitos que se reconhecem parceiros na troca, com contribuições recíprocas, conquanto diversas. Pode-se pensar aqui idealmente na sociedade brasileira pluriétnica e multicultural, com sua identidade de nação fundada no reconhecimento mútuo de suas partes e, consequentemente, na função distributiva dos frutos do que essa sociedade em conjunto produz. 

O que me interessa reter no "velho" argumento durkheimiano é, justamente, a noção do reconhecimento social básico, uma noção que tantas vezes falta em contextos onde as desigualdades criam fossos sociais. Nada a ver com o sentido de solidariedade social orgânica, formulado pelo autor, ainda que situações de pobreza, miséria extrema, possam dar lugar a ações de "ajuda" aos necessitados. Grupos sociais concebidos apenas como necessitados, ou grupos aos quais não se atribui  reconhecimento social pleno, não são parceiros do intercâmbio social. São tidos  como incapazes de estabelecer trocas que valham a pena, ou  são vistos como carentes de recursos que justifiquem sua inserção na divisão do trabalho e suas trocas. As cenas das malfadadas negociações que cercam a construção da hidrelétrica remetem a esse tema do reconhecimento dos vários outros em presença.  Tem-se, aqui, déficits de reconhecimento: cultural, social, étnico, econômico, ambiental... 

Pode-se dizer com razão que essas idéias fortes do início do século XX, assentadas na idéia de sociedade, fazem pouco sentido hoje.  Mas elas ainda "são boas para pensar" sobre o nosso mundo. Os episódios que marcam a posição histórica das populações amazônicas nas negociações com o país, com outros países, estão a reafirmar os déficits de reconhecimento. As relações são de dominação, a integração se dá  sempre em benefício de interesses dominantes, o que limita já à partida os termos do intercâmbio, a menos que as capacidades de resistência consigam alterar alguns desses termos. As palavras do fundador da sociologia moderna, ao interpretar a divisão do trabalho como fonte da solidariedade moderna, mal se aplicam às relações de promoção do "desenvolvimento regional" entre nós, já de há muito tempo. 

É assim que no âmbito da Sociologia a própria idéia de sociedade como um todo mais ou menos ordenado, como um sistema integrado, com uma economia sustentada pelo Estado-nação, perdeu força. As levas de desempregados no cerne mesmo do mundo desenvolvido e a fraqueza dos respectivos governos em reverter as tendências de mercado estão a demonstrar que a idéia de sociedade - com suas partes ligadas pelo trabalho social - implodiu. O mesmo vale, entre nós, para o ingresso massivo de jovens na criminalidade.

O indivíduo moderno nasceu livre das amarras da tradição. Sobretudo nos anos dourados do capitalismo, entre meados dos anos 1940 a meados dos 1970, esteve relativamente protegido em sua liberdade pelos direitos de cidadania, esses instrumentos da solidariedade orgânica. Hoje, esses direitos são tornados supérfluos, um peso para a sobrevivência dos agentes no mercado. É preciso que cada um busque seus meios de sobreviver. Mas, o indivíduo do século XXI, como analisou Robert Reich no livro Supercapitalismo, cindiu-se em lados conflitantes: de um lado, é consumidor e investidor (à cata, portanto, das melhores taxas de retorno para suas aplicações); de outro, é cidadão de uma democracia. Ao mesmo tempo em que quer políticas sociais e proteção ao emprego e ao trabalho, não hesita em cobrar dos cuidadores de suas poupanças, as aplicações mais rentáveis. 

Se não é possível vislumbrar a solidariedade global que poderia conduzir ao internacionalismo das lutas sociais sonhado no século XIX, movimentos sociais hoje chamam a atenção para projetos locais de sociedade, para experiências de alternativas econômicas e à construção de novas redes sociais. São fundadas em bases menos abrangentes, mas não menos utópicas e enérgicas. 

Obra consultada: DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. São Paulo, Martins fontes, 1999.

Notícia sobre manifestação dos índios Juruna está disponível em: 

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