sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

BELÉM, CIDADE CRIATIVA?

Faço esta pergunta a propósito de um conceito relativamente novo por aqui: cidade criativa. Ele contém idéias muito instigantes. Não se refere a uma característica natural de uma cidade, de um dom ou uma qualidade que determinadas cidades têm e outras não. Ao contrário, refere-se a uma conquista, que resulta de intervenções calculadas e de alianças entre os atores sociais da cidade. 

Toda cidade tem potencial criativo, pois em toda população há vontade de criar, há criadores e inovadores e esse potencial depende de condições para florescer. E o espaço urbano é, por excelência, espaço de encontros, de concentração de pessoas com costumes, visões de mundo e culturas. Então, um campo fértil para inovações. É uma forma de pensar a cidade como um fato social. No dia a dia, vivendo as mazelas da cidade, o trânsito, a violência, o desemprego, a degradação ambiental, tendemos a encará-la como uma supra-realidade, fora do nosso alcance.

Os proponentes desse conceito apontam como característica da cidade criativa, a formulação de objetivos e estratégias para a gestão do território da cidade, envolvendo os seus atores - os habitantes, suas associações, empresas e  governos. Portanto, trata-se de objetivos e metas que não sejam simplesmente "conhecidos" da população, como por exemplo, obras públicas que o governo dá a conhecer aos moradores. 

Uma dimensão notável do conceito é a idéia de tornar a criatividade um recurso de valor econômico. E uma grande  fonte de estímulo à criatividade está na identidade cultural, ou identidades culturais de suas populações. Essa idéia aponta para a necessidade de conhecer, valorizar e estimular as pessoas e os grupos que compõem a vida da cidade, partindo do que os identifica. Não necessariamente essa identidade pré-existe  ou é claramente percebida democraticamente. Há as culturas valorizadas e as não valorizadas, a cultura de elite e a das massas, os bairros centrais e os periféricos,  a arquitetura eleita como "patrimônio" e a que não entra nessa categoria. Há, também, leituras consagradas da história e da cultura local, de seus grandes personagens, que servem a determinados grupos e invizibilizam outros grupos e suas práticas. De todo modo, o conceito realça a capacidade de superar os bloqueios, os guetos, e de encontrar pontos de convergência de objetivos sem sufocar a diversidade social. Tarefa de fôlego em contextos de grande desigualdade! A idéia é de que a identidade pode ser descoberta, redescoberta ou, então, produzida, por exemplo, a partir de estudos sobre a história local, ou a partir da promoção de certos eventos (festas, congressos, manifestações culturais... ), que podem inclusive ser restritos a determinados segmentos. Iniciativas especiais podem fazer com que a população em conjunto vá se apropriando dessas práticas e elas vão passando a fazer parte da identidade do lugar. A respeito da busca de um patrimônio cultural comum, vem-me a mente o filme Narradores de Javé, que focaliza os moradores de uma região a ser inundada por uma barragem e que precisavam encontrar evidências de que o território a ser inundado era seu patrimônio histórico e cultural. 

A constituição de uma cidade criativa parte da cultura, ou das culturas locais, do patrimônio material e imaterial de suas populações, procurando associar esse patrimônio à economia, de maneira a dinamizar sua base econômica.

Segundo a especialista no tema, Ana Carla Fonseca Reis, em texto disponível na internet, a cidade criativa "transforma sua estrutura socioeconômica a partir da criatividade dos habitantes". A empresa, para ser bem sucedida, requer sinergias através de práticas colaborativas entre os atores da cidade. Nas palavras da autora:

A criatividade impulsiona a busca de novos arranjos de governança entre público, privado e sociedade civil; de formas alternativas de financiamento (mais voltadas ao capital de conhecimento do que às garantias físicas); de inovações na gestão da cidade; de valorização da criatividade; e de busca de modelos colaborativos, nos quais todos ganham (ao invés de competitivos, nos quais um ganha no curto prazo e todos perdem).

A autora indica uma série de experiências tidas como sucesso, dentre as quais Barcelona e Bilbao, na Espanha. Neste último, caso tratava-se de uma cidade  que se constituíra em torno de um porto e da atividade de mineração. Com o recuo dessas funções pós 1980, a economia  estagnou. Mas, ela ressalta que a forma de sair da crise é que foi inusitada. Teve a ver com as redes sociais, ou redes sócio-políticas - conceito aplicado pelo sociólogo brasileiro José Ricardo Ramalho. Essa história merece atenção:

Com o objetivo básico de encontrar uma estratégia que lhe granjeasse empregos, impostos, bem-estar social e a reposicionasse no mundo, a recuperação da cidade foi objeto de uma parceria entre agentes públicos e privados, que desenhou oito eixos estratégicos. Entre eles, vários ligados a infraestrutura (metrô, aeroporto), mas todos simbolizados por uma face visível: o Museu Guggenheim. Hoje, muitas cidades miram-se no Guggenheim como produto, esquecendo de analisar o processo que levou à sua construção e que têm no museu apenas a ponta de um iceberg.

Mais perto de nós, Medellín, na Colômbia, classificada cidade mais violenta do mundo em 1991, mudou seu perfil. A formação de uma ampla rede social e a definição de estratégias claras para orientar os investimentos no longo prazo, com grande cuidado com as zonas mais vulneráveis, pesaram no sucesso.

O processo de transformação teve início em um movimento cívico, independente e amplo, que aglutinou do meio acadêmico às empresas privadas, das associações comunitárias às ONGs mais diversas. Seu foco sempre recaiu sobre o investimento em dois setores: educação pública e cultura e teve claramente o apoio do governo municipal, muito criticado por algumas vozes que viam nesse investimento um desvio do premente combate ao crime. (...) Como armas de combate a cidade optou porém por livros, urbanismo social, iniciativas de fomento à criação cultural, fortalecimento à participação cidadã, recuperação da autoestima. (...) A face mais visível desse processo (e sempre há ao menos uma), porém, são as renomadas bibliotecas-parque, equipamentos culturais de ponta, tanto como conceito, quanto como projetos arquitetônicos, construídos nos locais socialmente mais frágeis da cidade. Com vasta programação educativa e cultural, são espaços públicos dos quais a comunidade se apropria, nos quais se desenvolve, se fortalece e se reconhece. (Ana Carla Fonseca Reis)

O conceito não se aplica hoje a Belém. Não se tem definição de objetivos e estratégias de intervenção urbana pelo poder público,  nem estímulo à criatividade e à participação. Um dos leitores da última edição do Jornal Pessoal, de Lúcio Flávio Pinto, pergunta o que se sabe do Portal da Amazônia. Tem-se visto na TV insatisfação de moradores  deslocados. O que se sabe dos rumos da especulação imobiliária, das vistas para os rios, para que servem? Como se articulam certas obras  de infraestrutura com intervenções complementares a fim de que as obras tragam benefícios sociais sólidos? Como, por exemplo, os monumentos históricos da Cidade Velha se articulam com o conhecimento da história daqueles espaços? Qual o vínculo  e identidade dos moradores com aqueles edifícios e ruas? Que eventos científicos, artísticos podem ser fomentados sobre as relações entre Belém e suas águas? Tem muita criatividade em Belém, artística e cultural sobretudo.

Os exemplos da autora sobre cidades criativas, dos quais selecionei dois, tratam de dimensões que valem mais do que dinheiro. São, principalmente, ativos sociais: planejamento, formação de redes colaborativas, além de foco nas condições que favoreçam a criatividade da população. Planejar significa combinar as ações e fixar metas de mais longo prazo; aquilo que sempre está nos discursos de eleição. Acho que o conceito é útil pois convida a buscar soluções. Não há fórmula. Do caso de Medellín, ressalta o cuidado com as populações mais vulneráveis, portanto, necessitadas de atenção especial para assumirem seu inevitável protagonismo na transformação da cidade para melhor. 

3 comentários:

  1. Você e suas análises surpreendentemente instigantes. Sabemos os encantos que Belém possui e o pouco que são aproveitados. Quando olho os arranha-céus que se espalham pela cidade, entristeço-me. Não sou contra o "progresso" e menos ainda pela "modernização" do espaço, mas sou absolutamente contra a aplicação de soluções inadequadas para a nossa realidade. Não falo nem em vocação... se há uma vocação gritante e escandalosa é do desperdício do dinheiro público e da "ignorância" de nossos governantes. Ignoram totalmente aqueles que deveriam servir. São muito criativos, no entanto, em governar em benefício próprio.
    beijinhos

    ResponderExcluir
  2. É mana, tem criatividade para tudo. Esse conceito é bem interessante. Em Portugal já está mais popularizado, como informa a Ana Gomes. Há muitos sites portugueses na internet tratanto do assunto. Obrigada pela visita.
    Bjs.

    ResponderExcluir
  3. E Óbidos lidera o processo na Europa hehe.....

    ResponderExcluir