segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

DEPOIS DA CHUVA

Ninguém por certo fica indiferente diante dos sofrimentos trazidos pela atual estação de chuvas, sobretudo na região serrana do Rio de Janeiro, nas primeiras semanas do ano, amplamente mostrados na TV. Na ocasião, além das costumeiras promessas de ação, muitas análises e propostas importantes tem sido feitas. Como de praxe, as justas críticas ao que se fez e deixou de fazer, constata-se aqui e ali desleixo, indícios de corrupção que atrasaram a adoção de técnicas que teriam minimizado as perdas, a exemplo de sistemas de alarme, ou  treinamentos da população. Vem a público que, por entraves burocráticos, determinado aparelho de monitoramento que havia sido comprado não funcionava na hora H. Ganham novo fôlego propostas de reforma urbana e  as lembranças sobre o quanto o inchaço das cidades deve à falta de reforma agrária. Pela enésima vez, fica patente o déficit habitacional. Pela enésima vez, também, vemos pessoas entrevistadas residindo à margem de rios ou em encostas dizendo que sabem dos riscos, convivem com a insegurança, mas não saem, ou não podem sair. 

A essas imagens do Sudeste, somam-se as cenas menos espetaculares de Belém, em mais um dia em que coincidem chuvas fortes com marés de sizígia - as marés de lanço no dizer dos pescadores - produzindo enchentes. Quantos sofás, poltronas, colchões, armários e geladeiras semi-submersos a indicar que não mais servirão. Ver pela TV as pessoas saindo de casa com água pela cintura em meio à poluição dá arrepio só de pensar em doenças, no mínimo. E a fala do prefeito entrevistado de que a conclusão da Macrodrenagem vai sanar os alagamentos soa pouco convincente diante de uma história rotineira.
 
Para além de discussões super pertinentes dos problemas e das soluções, deparei-me com duas análises que, escritas em tempos muito diferentes, tratam o tema com sensibilidade e originalidade. Para além da busca de culpados individuais ou institucionais, eles apontam para culpas coletivas. Sublinham como os impactos das chuvas espelham os paradoxos da nossa organização social, tão voltada para o crescimento e para a produção, que celebra o aumento do consumo e da renda e,
ao mesmo tempo, despreocupada com o que vai em suas suas periferias, no sentido espacial e social. O tipo de "fé no progresso" que nos move coletivamente cerra-nos o olhar para os processos da natureza e para saberes e práticas mais atentos à complexidade desses processos.

A primeira dessas análises a que me refiro está no texto que Carlos Drummond de Andrade escreveu para o Jornal Correio da Manhã de 14 de janeiro de 1966, chamado "Dias escuros", republicado há poucos dias no Viomundo (http://www.viomundo.com.br/). Impressiona a semelhança dos problemas de hoje e os de quase meio século e a sagacidade e a generosidade de seu olhar de poeta ao se debruçar sobre o assunto. Merece ser lido e pensado. Por isso, selecionei alguns trechos.

Eis que em um dia "sem luz", ele se referia à cidade do Rio "ensopada de chuva" e à sorte dos moradores mais vulneráveis: 
 
"Chego à janela e não vejo as figuras habituais dos primeiros trabalhadores. (...) Barracos que se desmancham como armações de baralho e, por baixo de seus restos, mortos, mortos, mortos. Sobreviventes mariscando na lama, à pesquisa de mortos e de pobres objetos amassados".
 
Crítico mordaz da sociedade, ele se refere à cidade "...tão rica de galas e bens supérfluos, e tão miserável em sua infra-estrutura de submoradia, de subalimentação e de condições primitivas de trabalho"


A tragédia denunciava "velhos erros sociais e omissões urbanísticas". Assim, ele reclamava sobre o papel do remorso que faltava diante dos que mais sofriam. Drummond se impressionava especialmente com a sorte dos trabalhadores, "a mão de obra que dorme nos morros sob a ameaça contínua da natureza" e que, portanto, mais fortemente sofria os impactos. E mencionou então as crianças que "nem tiveram tempo de crescer para cumprimento de um destino anônimo". 

Desde então, é fora de dúvida que os trabalhadores no Brasil conquistaram direitos significativos.  Ampliou-se a "armadura assistencial" cuja ausência ele lamentava. Ela vem com os aluguéis sociais, o acesso facilitado ao FGTS e ao crédito imobiliário, procuradores e defensores públicos mobilizados rapidamente para agilizar os trâmites relativos às mortes e perdas materiais, além de uma previdência social muito mais inclusiva. Mas é bem certo, também, que persistem estruturas sociais que conduzem crianças e jovens aos "destinos anônimos", não só nas encostas e beiras de rios, como também nas prisões em que sobressaem os jovens.
 
O texto revela uma outra semelhança entre hoje e ontem. Uma semelhança positiva se assim se pode dizer. É a solidariedade imediata das pessoas, sobre a qual ele disse ser uma "corrente de afeto solidário, participante, que procura abarcar todos os flagelados". Essa ajuda espontânea emociona sempre, mesmo se se cobra do Estado, com toda razão, a necessidade de treinar voluntários para atuar organizadamente em situações de calamidade, o que ocorre na Austrália, no Japão, no Canadá etc., como destacam os noticiários.

O outro texto é de Leonardo Boff. Em" O preço de não escutar a natureza" (www.adital.com.br), ele toca em uma "ferida mais funda", penso. Clique em "leia mais", abaixo, para prosseguir.



Segundo Boff, a causa principal da tragédia
 
deriva do modo como costumamos tratar a natureza. Ela é generosa para conosco pois nos oferece tudo o que precisamos para viver. Mas nós, em contrapartida, a consideramos como um objeto qualquer.

O preço desse distanciamento é caro, a começar pela pobreza de nossos próprios conhecimentos sobre as complexidades que regem os fenômenos ambientais. E, ademais, nossa cegueira para outras formas de utilizar e conhecer essa natureza. Diz ele:

Somos analfabetos e ignorantes da história que se realizou nos nossos lugares no percurso de milhares e milhares de anos. Não nos preocupamos em conhecer a flora e a fauna, as montanhas, os rios, as paisagens, as pessoas significativas que ai viveram, artistas, poetas, governantes, sábios e construtores

E prossegue apontando nossa ignorância comum:

O universo e a natureza possuem história. Ela está sendo contada pelas estrelas, pela Terra, pelo afloramento e elevação das montanhas, pelos animais, pelas florestas e pelos rios. Nossa tarefa é saber escutar e interpretar as mensagens que eles nos mandam. Os povos originários sabiam captar cada movimento das nuvens, o sentido dos ventos e sabiam quando vinham ou não trombas d'água (...)
 
Conhecemos os vales profundos e os riachos que correm neles. Mas não escutamos a mensagem que eles nos enviam que é: não construir casas nas encostas; não morar perto do rio e preservar zelosamente a mata ciliar.

Ele então conclui:
 
Só controlamos a natureza na medida em que lhe obedecemos e soubermos escutar suas mensagens e ler seus sinais. Caso contrário, teremos que contar com tragédias fatais evitáveis.

É muito profunda essa reflexão sobre o conhecimento do meio ambiente que depende da atenção, da proximidade e da sensibilidade. E, sobretudo, convida a prestar atenção a distintas formas de conhecer, que se constrói através de distintas formas de uso. Ele aponta, em especial, para o papel da memória social sobre os lugares, incluindo a memória dos artistas e dos moradores mais antigos. Eles têm a contribuir na produção de conhecimentos necessários não só nos esforços de reconstrução, mas também de preservação dos lugares e das pessoas.







 






2 comentários:

  1. Sempre que leio a palavra "natureza" me lembro de Francis Bacon, o filósofo inglês do século XVI. Nem sei se é uma interpretação distorcida de apenas um fragmento lido, mas a visão de natureza como algo a ser dominado tocou-me profundamente. Menina criativa, imaginei uma mulher sendo violada violentamente. Assim concebi a natureza baconiana.
    O interessante é que é isto que fazemos com ela todo dia. E o resultado é esse que nos apavora.

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  2. É Ida, eu achei muito legal essa leitura do Boff, que critica essa visão da natureza como "a serviço" dos homens (a mulher violada). Agora, Bacon estava escrevendo em um momento de libertação das tradições e era otimista ao celebrar as capacidades produtivas e criativas que os homens tinham e estavam começando a libertar dos velhos jugos. Beijinhos.

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